Por que o cinema se tornou cada vez mais elitizado? Os serviços de streaming irão liquidar os grandes estúdios e as salas de cinema?

Por que o cinema se tornou cada vez mais elitizado? Os serviços de streaming irão liquidar os grandes estúdios e as salas de cinema? - Marcos Doniseti! 

Os serviços de streaming estão crescendo rapidamente e investem cada vez mais em novas produções, incluindo filmes e séries, ocupando um espaço que, antes, era dos grandes estúdios de Hollywood. 

O cinema já foi a forma de arte mais popular e barata que existiu e até os mais pobres tinham condições de pagar por um ingresso. Era assim no mundo inteiro. 

Na época da Grande Depressão, nos anos 1930, por exemplo, os cinemas viviam lotados, pois frequentá-los era uma maneira muito barata de, pelos menos por 90 ou 120 minutos, esquecer os gigantescos problemas da vida (desemprego, fome, miséria). 

Nos anos 1950 (nos EUA), 1960 (na Europa) e 1970 (América Latina)  nós tivemos a massificação da TV, o que já havia contribuído para que ocorresse uma forte redução no número de frequentadores das salas de exibição. 

Na época, isso gerou uma forte crise nos grandes estúdios de Hollywood, com alguns deles ficando próximos da falência nos últimos anos da década de 1960, o que foram os casos da Paramount e da Warner, por exemplo. 

Este cenário de crise terminal dos grandes estúdios abriu caminho para que, a partir da segunda metade dos anos 1960, uma nova geração de diretores, produtores, roteiristas, atores e atrizes promovessem uma grande renovação na produção de Hollywood. 

Muitos dos membros desta nova geração vinham do teatro, outros vinham da TV ou do cinema independente e alguns eram mais jovens e outros um pouco mais velhos, mas todos produziam e criavam um tipo de cinema radicalmente diferente daquele que predominava em Hollywood há décadas.  

Esta ficou conhecida 'Como a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'roll Salvou Hollywood' (título do livro de Peter Biskind).

Entre alguns dos principais nomes que emergiram neste período nós tivemos Martin Scorsese, Francis F. Coppola, Brian de Palma, Dennis Hopper, John Cassavetes, Robert Altman, Wiliiam Friedkin, Steven Spielberg, Robert De Niro, Harvey Keitel, Jane Fonda, Gene Hackman, Ellen Burstyn e John Cazale.

Robert De Niro em cena de 'Taxi Driver' (Martin Scorsese, 1976), um dos grandes clássicos dos anos 1970, época em que Hollywood abriu espaço para as produções de uma nova geração, que revitalizou a produção cinematográfica e salvou os grandes estúdios da completa falência.

Nas últimas décadas, a partir do estouro dos blockbusters nos anos 1970 (de 'Tubarão', do Spielberg, em diante...) esse momento histórico foi chegando ao fim e, desta maneira, ir ao cinema virou um programa do tipo levar a criançada para um parque de diversões. 

Então, não foi à toa que o Martin Scorsese disse isso sobre os blockbusters da Marvel.

Até porque os filmes que passaram a ser produzidos por Hollywood (com as exceções de sempre...), principalmente os blockbusters, são essencialmente voltados para agradar ao público adolescente e os mesmos são produzidos sob medida para atrair esse público.

Assim, os produtores realizam inúmeros testes com o público alvo para verificar se o filme está exatamente do jeito que o público gosta. Se os espectadores dão risada quando deveriam chorar ou choram quando deveriam dar risada, eles mandam o roteirista e o diretor consertar o filme, como se o mesmo fosse um produto novo com defeito. E é justamente disso que se trata. Um mero produto. Simples assim. 

Portanto, produzir esses caríssimos blockbusters é o equivalente de se fabricar um refrigerante sob medida para agradar ao público que se deseja conquistar com o mesmo. Tais filmes são uma mercadoria como outra qualquer.

Arte? Isso é outra história. 

E os altos custos de produção e distribuição destes blockbusters, que possuem orçamentos gigantescos, fez com que os mesmos somente pudessem se tornar lucrativos para todos (produtores, distribuidores e exibidores) se eles fossem exibidos em milhares de salas ao mesmo tempo. 

Com isso, foram criadas as redes de cinema multiplex que são proprietárias de milhares de salas de exibição pelo mundo inteiro. 

Cena de 'Tubarão' (1975), de Spielberg, que foi o primeiro Blockbuster e que acabou revolucionando a forma de se produzir, distribuir e exibir filmes. Uma das consequências do surgimento dos blockbusters foi a formação das chamadas redes Multiplex, na qual uma única empresa possui milhares de salas de exibição, que se concentram nos shoppings centers. 

Aliás, é bom ressaltar que a imensa maioria dos gastos com estes blockbusters nao são com a produção dos filmes, mas com os efeitos especiais, com os salários dos astros que trabalham neles, com o marketing feroz (anúncios em rádio, TV, em revistas especializadas, outdoors...) e com a distribuição e exibição em milhares de salas. 

E foi daí que, para permitir que esses blockbusters caríssimos fossem lucrativos, os capitalistas envolvidos neste negócios (produtores, distribuidores e exibidores) passaram a concentrar os filmes em salas de exibição nos shoppings centers, uma ao lado da outra. 

Essa foi uma maneira de compensar o aumento dos custos altíssimos destas grandes produções. 

E como os custos de alugar uma sala nos shoppings são muito elevados, então eles passaram a oferecer esses outros serviços junto com a exibição dos filmes: pipoca, refrigerante, estacionamento. 

E os espectadores, além destes gastos, também tem muitas despesas com transporte (tarifas de transporte coletivo ou gastos com combustível do carro individual), pois aquelas salas de exibição que existiam, muitas vezes, próximo de onde ele residiam, fecharam as portas, pois haviam deixado de ser lucrativas. 

E com isso ocorreu uma inevitável elitização do hábito de se frequentar cinemas, o que levou a uma forte redução no número de frequentadores. E para compensar essa redução, aumentaram-se os preços dos ingressos. 

Sem falar que, em um país violento como é o Brasil, onde cerca de 45 mil pessoas são assassinadas anualmente, sempre existe um grande risco ao se sair de casa (de ser assaltado, assassinado...). 

Para efeito de comparação, os EUA perderam cerca de 55 mil soldados no Vietnã entre 1963 e 1975. É como se o Brasil estivesse em uma situação de guerra civil não declarada. E está mesmo. 

Cena de 'Deus e o Diabo na Terra do Sol' (1964), de Glauber Rocha. Será que, nestes novos tempos de crescente poderio dos serviços de streaming, existirá espaço para uma produção tão inovadora e criativa quanto a de cineastas como Glauber Rocha?  

Assim, com tantos estímulos para que não se vá ao cinema, não é à toa que tantas pessoas preferem assistir aos filmes em casa, esperando pelo momento em que a TV paga ou os serviços de streaming irão exibir tais filmes. 

Enquanto isso, os cinemas de rua, que antigamente eram os mais frequentados e que exibiam filmes de Fellini, Truffaut, Godard, Bergman, passaram a fechar aos milhares, sendo que muitos dos prédios se tornaram templos religiosos. 

E agora, com a Pandemia de Covid-19, especialistas dizem que é provável que uma ocorra uma queda ainda mais brutal no número de espectadores nas salas de exibição, mesmo que tenhamos vacinas eficazes contra a doença.

Desta maneira, será acelerado o processo de crescimento dos serviços de streaming, cujas empresas são, cada vez mais, produtoras de filmes, como é o caso da Netflix, que produziu obras de talentoso e consagrados cineastas autorais, como são os casos de Alfonso Cuarón ('Roma'; 2018) e de Scorsese ('O Irlandês', 2019).

Aliás, no caso de 'Roma', o filme do cineasta mexicano entrou até mesmo para o prestigioso catálogo da Criterion Collection. 

A Disney foi uma das corporações que percebeu claramente para qual direção o vento está soprando e tratou de adquirir o catálogo da Fox para Cinema e TV, com o objetivo de reforçar a oferta de seu novo serviço de streaming, que é o Disney Plus. 

O vento está soprando em uma nova direção e a indústria do cinema já está passando e continuará a mudar bastante nos próximos anos. A questão que se pergunta é se, neste novo cenário, continuará existindo espaço para uma produção mais rica, diversificada, como aquela que é criada por cineastas autorais e independentes. 

Essa produção de perfil independente e autoral, que não se preocupa apenas com os lucros que um filme possa gerar, mas que também se propõem a continuar renovando a linguagem cinematográfica, também precisará se adaptar aos novos tempos.

E já existem alguns serviços de streaming que oferecem essa produção baseada em filmes de arte, cults e clássicos, como são os casos do MUBI e do Belas Artes  

Afinal, como Charles Darwin já dizia, quem possui maiores chances de sobreviver são aqueles seres vivos que melhor se adaptam às mudanças. 

E com o cinema isso não será diferente.

Cena de 'O Irlandês' (2019), de Martin Scorsese, uma grande e milionária produção que foi financiada pela Netflix, simbolizando claramente a forte ascensão dos serviços de streaming. 

Links:

A formação das redes multiplex:

https://www.abraplex.com/post/a-era-do-multiplex

As salas de cinema irão acabar? 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/12/o-tao-alardeado-fim-dos-cinemas-pode-enfim-estar-perto-de-ocorrer.shtml

'Roma' é o primeiro filme da Netflix que entra para o catálogo da Criterion Collection: 

https://cinepop.com.br/roma-filme-de-alfonso-cuaron-e-o-primeiro-da-netflix-a-entrar-para-a-criterion-collection-229731/

Número de assassinatos no Brasil voltou a crescer no Brasil em 2020:

https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/04/29/apos-ano-de-queda-recorde-no-de-assassinatos-sobe-8percent-no-brasil-nos-dois-primeiros-meses-de-2020.ghtml

Disney estuda incorporar o Hulu ao Disney Plus:

https://cinemacomrapadura.com.br/noticias/590893/disney-estuda-incorporar-streaming-hulu-ao-disney-plus/

Disney conclui a compra da Fox por US$ 71 Bilhões:

https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/03/20/disney-conclui-compra-da-21st-century-fox-por-us-71-bilhoes.ghtml

Mubi: o serviço de streaming para filmes de arte, cults e clássicos:



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