Alexandre Astruc escreveu o texto que antecipou a criação da 'Nouvelle Vague'!
Alexandre Astruc escreveu o texto que antecipou a criação da 'Nouvelle Vague'! - Marcos Doniseti!
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Alexandre Astruc foi o autor de um texto que exerceu enorme influência sobre o cinema francês e mundial e que antecipou a existência da 'Nouvelle Vague'. |
O
cineasta, crítico e teórico francês do cinema Alexandre Astruc escreveu
um texto fundamental para a história do Cinema francês (e mundial), em
1948, que foi o 'O nascimento de uma Nova Vanguarda: A Camera-Stylo'. O
texto foi publicado na revista 'L'Écran Français', na edição de número
144, de 30/03/1948.
O crítico David Thomson disse que o texto de Astruc foi 'a mais importante teoria crítica que o cinema já produziu'.
Astruc
usou a expressão 'Caméra-Stylo' (Câmera-Caneta) para definir o chamado
'Cinema Autoral' ou 'Cinema de Autor'. Mas em língua francesa Stylo tem
um duplo significado, de caneta e estilo, simultaneamente.
A
palavra 'Stylo', em francês, significa 'caneta', ou seja, seria um
Cinema realizado com uma assinatura, passando a existir um Cinema feito
por um Autor, tal como é a Literatura. Assim, cada autor teria o seu
próprio stylo (estilo) de filmar.
No
Cinema produzido na França dessa época tal Cinema ainda não existia,
mas Astruc se antecipou e passou a difundir a necessidade de criá-lo. E
no seu texto ele diz que, em algum momento, isso iria acontecer e que
este Cinema passaria a existir.
E
foi exatamente isso que ocorreu quando apareceram novos cineastas, tais
como Jean-Pierre Melville, Alain Resnais, Agnés Varda, Chris Marker e,
principalmente, a geração que criou a 'Nouvelle Vague', que foram os
críticos da revista 'Cahiers du Cinéma': Jean-Luc Godard, François
Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette, Éric Rohmer (cujo nome
verdadeiro era Maurice Schérer), Pierre Kast, Jacques Doniol-Valcroze.
Aliás, Astruc também escreveu para a 'Cahiers'.
Estes
críticos foram muito influenciados pelo texto de Astruc e, depois, se
lançaram à missão de defender o desenvolvimento de um Cinema Autoral.
Durante a sua carreira, Astruc também dirigiu curtas e longas-metragens,
documentários e também fez filmes e séries para a TV.
Logo,
de certa maneira, a 'Nouvelle Vague' foi fruto de uma teorização
prévia, anterior à sua existência, e que defendia a necessidade de se
desenvolver um cinema tipicamente autoral, no qual o Diretor do filme
tivesse o controle da produção e de todos os aspectos relacionados à
realização do filme. Nos EUA, o cinema era controlado pelos produtores,
enquanto que na França isso era feito pelos roteiristas.
A
'Nouvelle Vague' e mais alguns cineastas que citei (Resnais, Varda,
Melville) vão defender que os diretores tivessem o controle da situação,
tomando as decisões relacionadas ao orçamento, produção, roteiro,
atuação e montagem dos filmes.
Abaixo,
reproduzo o texto de Alexandre Astruc ('O nascimento de uma Nova
Vanguarda: A Camera-Sytlo'). O texto foi retirado do site 'Foco Revista
de Cinema' e foi traduzido por Matheus Cartaxo (ver link abaixo).
O NASCIMENTO DE UMA NOVA VANGUARDA: A CAMÉRA-STYLO!
- por Alexandre Astruc!
O que me interessa no cinema é a abstração (Orson Welles).
É
impossível deixar de ver que algo está acontecendo no cinema. Corremos o
risco de nos tornarmos cegos diante da produção corrente, que mostra
todos os anos o mesmo rosto imóvel, onde o insólito não tem vez.
Ora,
o cinema hoje tem um novo rosto. Como se vê isso? Basta reparar. É
preciso ser crítico para não ver esta transformação espantosa do rosto,
que acontece sob nossos olhos. Quais são as obras atravessadas por essa
nova beleza? Precisamente aquelas que a crítica ignora. Não é por acaso
que de 'A Regra do Jogo' de Renoir aos filmes de Orson Welles, passando
por 'As Damas do Bois de Boulogne', tudo aquilo que traceja as linhas de
um novo futuro escapa a uma crítica da qual, de qualquer forma, não se
poderia esperar outra coisa.
Mas
é significativo que as obras que escapam às bênçãos da crítica sejam
aquelas sobre as quais nós somos alguns a estar de acordo. Nós lhes
atribuímos, se quiserem, um caráter anunciador. É por isso que eu falo
de vanguarda. Há vanguarda toda vez que acontece algo de novo...
Precisemos. O cinema está a caminho de tão simplesmente tornar-se um
meio de expressão, isso o que foram todas as artes antes dele, isso o
que foram em particular a pintura e o romance.
Após
ter sido sucessivamente uma atração de feiras, uma diversão análoga ao
teatro de boulevard, ou um meio de conservar imagens da época, ele se
torna, pouco a pouco, uma linguagem. Uma linguagem, ou seja, uma forma
na qual e pela qual um artista pode exprimir seu pensamento, por mais
que este seja abstrato, ou traduzir suas obsessões do mesmo modo como
hoje se faz com o ensaio ou o romance.
É por isso que eu chamo a esta nova era do cinema a 'Caméra-Stylo'.
Essa
imagem tem um sentido bastante preciso. Ela quer dizer que o cinema irá
se desfazer pouco a pouco dessa tirania do visual, da imagem pela
imagem, da narrativa imediata, do concreto, para se tornar um meio de
expressão tão flexível e sutil como o da linguagem escrita.
Esta
arte, dotada de todas as possibilidades, porém prisioneira de todos os
preconceitos, cessará de permanecer cavando eternamente o pequeno
domínio do realismo e do fantástico social que lhe é acordada nos
confins do romance popular quando deixarmos de fazer dela o domínio de
eleição dos fotógrafos.
Nenhum domínio lhe deve ser interdito. A
meditação mais despojada, um ponto de vista sobre a produção humana, a
psicologia, a metafísica, as idéias, as paixões são muito precisamente
de seu interesse. Ou melhor, diremos que essas idéias e visões de mundo
são tais que hoje somente o cinema pode dar conta delas; Maurice Nadeau
dizia num artigo da Combat: “Se Descartes vivesse hoje, ele escreveria
romances.” Eu peço desculpas a Nadeau, mas hoje já um Descartes se
trancaria no seu quarto e com uma câmera 16 mm e película escreveria o
discurso do método em filme, pois seu 'Discurso do Método' seria tal
hoje em dia que somente o cinema poderia convenientemente o exprimir.
Deve-se
compreender que o cinema até hoje foi apenas um espetáculo. O que se
relaciona ao fato de que todos os filmes são projetados em salas.
Contudo, com o desenvolvimento dos 16 mm e da televisão, não está
distante o dia em que cada pessoa terá em suas casas aparelhos de
projeção e alugará, na livraria da esquina, filmes escritos sobre não
importa que tema, não importa qual forma, sejam críticas literárias,
romances, ensaios da matemática, história, variedades, etc.
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Cartaz de 'À Bout De Souffle', filme de Godard que Michel Marie considera o filme-manifesto da 'Nouvelle Vague' e que revolucionou o cinema mundial. |
Por isso não é mais possível falar de um cinema. Haverá cinemas como hoje há literaturas, pois o cinema como a literatura, antes de ser uma arte particular, é uma arte que pode exprimir qualquer setor do pensamento.
Essa idéia de cinema exprimindo o pensamento talvez não seja nova. Feyder já dizia:
“Eu posso fazer um filme sobre O Espírito das Leis”. Mas Feyder sonhava numa ilustração de 'O Espírito das Leis' pela imagem tal como Eisenstein pensava numa ilustração d’O Capital (ou em uma imagérie). Nós dizíamos que o cinema está a caminho de encontrar uma forma onde ele se torne uma linguagem tão rigorosa que o pensamento possa ser escrito diretamente sobre a película, sem mesmo passar por aquelas pesadas associações de imagens que fizeram as delícias do cinema mudo.
Em outros termos, para mostrar o tempo decorrido não é preciso mostrar a queda das folhas seguida do florescer dos pomares, e para indicar que o herói deseja fazer amor, há outras maneiras de proceder para além daquela que consiste em mostrar uma caçarola de leite a transbordar, como Clouzot fez em 'Crime em Paris'.
A expressão do pensamento é o problema fundamental do cinema. A criação dessa linguagem preocupou todos os teóricos e autores de cinema desde Eisenstein, até os roteiristas e adaptadores do cinema sonoro. Mas nem o cinema mudo, por ser prisioneiro de uma concepção estática da imagem, nem o sonoro clássico, como existe ainda hoje, puderam resolver convenientemente o problema.
O evento fundamental destes últimos anos foi a tomada de consciência que está se concretizando sobre o caráter dinâmico, isto é, significativo, da imagem cinematográfica.
Todo filme, por ser um filme em movimento, ou seja, que se desenrola num tempo, é um teorema. Ele é o ponto de passagem de uma lógica implacável, que vai de uma extremidade a outra dela mesma, ou melhor ainda, de uma dialética. Essa ideia, essas significações, que o cinema mudo tentou criar através de associações simbólicas, nós compreendemos que elas existem na imagem mesma, no desenrolar do filme, em cada gesto dos personagens, em suas palavras, nos movimentos de câmera que ligam os objetos e os personagens a estes.
Todo pensamento, como todo sentimento, é uma relação entre um ser humano e um outro ser humano ou certos objetos que fazem parte do seu universo. É explicitando essas relações, desenhando as tangentes, que o cinema pode ser verdadeiramente o lugar de expressão de um pensamento. A partir de agora é possível dar ao cinema obras equivalentes, pela profundidade e pelas suas significações, aos romances de Faulkner, aos de Malraux, aos ensaios de Sartre ou de Camus.
Aliás, temos sob os olhos um exemplo significativo: o de 'Espoir' de Malraux, onde possivelmente pela primeira vez a linguagem cinematográfica dá um equivalente exato da linguagem literária.
Examinemos agora as concessões às falsas necessidades do cinema.
Os roteiristas que adaptam Balzac ou Dostoievski desculpam-se pelo tratamento insensato que dão às obras a partir das quais eles fizeram seus roteiros, alegando certas impossibilidades do cinema em dar conta de conteúdos psicológicos ou metafísicos. Em suas mãos, Balzac vira uma coleção de gravuras, onde a moda tem mais importância, e Dostoievski de repente se assemelha aos romances de Joseph Kessel, com a embriaguez russa nas boates noturnas e as corridas de troïka na neve.
Ora, essas interdições devem somente à preguiça de espírito e à falta de imaginação.
O cinema atual é capaz de dar conta de qualquer tipo de realidade. O que nos interessa no cinema hoje é a criação dessa linguagem. Não pretendemos refazer documentários poéticos ou filmes surrealistas toda vez que possamos escapar das necessidades comerciais.
Como é que nesta arte, em que a banda visual e sonora se desenrola, desenvolvendo-se através de uma história (ou sem história, isso pouco importa) e de uma certa forma, de uma concepção de mundo, poderíamos fazer diferença entre aquele que pensou a obra e aquele que a escreveu? Imagina-se um romance de Faulkner escrito por alguém senão Faulkner? E 'Cidadão Kane' funcionaria noutra forma exceto aquela a qual Orson Welles lhe deu?
Eu sei bem que o termo “vanguarda” ainda fará pensar nos filmes surrealistas e nos filmes ditos abstratos do primeiro pós-Guerra. Mas essa vanguarda já é uma retaguarda. Ela procurava criar um domínio próprio para o cinema; nós procuramos, ao contrário, entendê-lo e fazer dele a linguagem mais vasta e mais transparente possível.
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Lauren Bacall na capa da revista 'L'Écran Français' que, na sua edição de 30/03/1948, publicou o revolucionário artigo de Astruc. |
Voilà. Não se trata de uma escola, nem mesmo de um movimento, talvez se trate simplesmente de uma tendência. De uma tomada de consciência, de uma certa transformação do cinema, de um futuro possível, e do desejo que nós temos de apressar esse futuro. Certamente nenhuma tendência pode se manifestar sem obras.
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