Entrevista - Godard fala sobre "Imagem e Palavra": 'O som acompanha a imagem e acreditamos no que estamos vendo. Isso é publicidade!'

Entrevista - Godard fala sobre "Imagem e Palavra": 'O som acompanha a imagem e acreditamos no que estamos vendo. Isso é publicidade!'

"Le Livre d'Image" (2018; 'Imagem e Palavra' no Brasil) foi o último longa metragem do revolucionário cineasta Jean-Luc Godard.

Jean-Luc Godard (2018): Palavras como formigas!

Uma tradução exclusiva da entrevista que o mestre francês da Nouvelle Vague concedeu sobre seu novo filme, The Image Book (Imagem e Palavra).

Dmitry Golotyuk e Antonina Derzhitskaya - 25/01/2019 - do MUBI

Nosso primeiro encontro com Godard ocorreu em Rolle, em Maio de 2016. (1)

Naquela época, a ideia do The Image Book já havia tomado forma: uma estrutura de quatro partes tornou-se seis partes (os cinco “dedos” como uma longa introdução e a “mão” isso inclui todos eles), enquanto o roteiro continha muitas tomadas e textos que seriam usados no filme (algumas coisas desapareceriam, no entanto, e outras citações textuais e visuais seriam retiradas das mesmas fontes).

A edição mal havia começado. Na pequena e enfumaçada sala de edição de Godard, tivemos, no entanto, a oportunidade de assistir aos primeiros onze minutos do filme – tudo o que foi feito até então.

Durante a nossa segunda visita em março de 2018, o filme estava quase terminado. A sala onde conversamos (e onde Zoé Bruneau assiste a um personagem de Metrópolis, de Fritz Lang, em Adeus à Linguagem) agora se transformou em uma pequena sala de projeção. É aqui que se realizam as primeiras projeções de Le Livre D'Image, nas condições que Godard julga mais adequadas. 

A sala foi projetada de uma maneira particular: uma grande tela de TV no centro, dois grandes alto-falantes voltados para os espectadores que estão sentados na parede oposta. 

Esses três elementos que estruturam o espaço lembram a ideia finalmente abandonada de fazer um filme-escultura para três telas. Mas o mais importante é distanciar o som da imagem, como sublinha Godard durante a nossa breve conversa com ele e Fabrice Aragno logo após a exibição. Dois dias depois, voltamos à casa dele para falar detalhadamente do filme.

DÉBORDEMENTS: Gostaríamos de falar sobre o seu novo filme, começando pelo título, O Livro de Imagens, porque é a primeira coisa que sai do comum.

É sabido que seus títulos sempre vêm antes do filme...

JEAN-LUC GODARD: Sim, mas aqui veio o título depois. Durante muito tempo o verdadeiro título, que agora é subtítulo, foi Image et parole (Imagem e Palavra).

D: Sim, e antes disso houve também Tentative de bleu (Tentativa de Azul), (2) Le grand tableau (noir) (A Grande Pintura/Quadro [Preto]) e outras versões. O que foi então se não foi o título que deu a direção, ou como você disse, impôs uma obrigação?

JLG: Aqui foi como todo título: um resumo. Nós vamos conversar sobre isso. E então escrevemos “imagem” no singular. Não era um livro com imagens, como vemos tantos, como livros sobre pintores e pinturas por exemplo. Foi a imagem. Ah, sim, queria te perguntar, estava com dificuldade de lembrar: em As Crianças Brincam de Rússia, há um momento em que diz que os Russos têm duas palavras para imagem...

D: Sim, "obraz" ("образ") e "izobrajenié" ("изображение").

JLG: E esqueci a diferença...

D: “Obraz” não é só o que se vê, é mais vasto, um tanto metafísico...

JLG: Sim, e o outro? É o que os americanos chamam de “imagens”?

D: Sim, é isso.

JLG: Ok. Mas em francês acho que disse no filme que a imagem, "obraz", era... mostrei um exemplo de ícone. Hoje isso é um ícone [ele levanta a tela do smartphone e ri].

D: Você se lembra qual foi o seu ponto de partida para este filme?

JLG: Realmente começou quando pensei nos cinco dedos. Eu disse para mim mesmo: “Vamos fazer um filme onde há cinco dedos e depois o que os cinco dedos formam juntos, a mão”. E foi então que pensei em... talvez outra parte depois. Mas isso levou tempo.

Os cinco dedos vieram rapidamente: 

- o primeiro dedo é refazer, copiar; 

- o segundo dedo é a guerra, e então encontrei este antigo texto em francês, Soirées de Saint-Pétersbourg (Joseph de Maistre, 1821); 

- e depois o terceiro foi um verso de Rilke (“aquelas flores entre os trilhos, no vento confuso das viagens”); 

- o quarto dedo era – certo, os dedos vieram quase ao mesmo tempo – era o livro de Montesquieu, O Espírito das Leis (1748); 

- e o quinto foi La région centrale, que é de um americano, Michael Snow, (3) que encurtei: não vemos mais tudo isso [Faz um gesto imitando uma panorâmica circular].

E então tive a ideia de que a região central era o amor entre um homem e uma mulher, que é tirado de 'Terra', de Dovzhenko.

"Le Livre D'Image" recebeu uma Palma de Ouro Especial no Festival de Cannes de 2018.

D: Qual é a ligação entre este casal e o filme de Michael Snow?

JLG: Bem, o casal é a região central, o que Michael Snow não diz, mas deixa para lá, ele estava apenas fazendo La région centrale.

D: Esse casal é o verdadeiro centro do filme?

JLG: Isso cabe ao espectador dizer. Ou Bécassine. [Ele olha para uma colagem na parede com uma imagem contendo uma imagem da história em quadrinhos francesa Bécassine – como vista no filme – e ri.]

D: Ou Fabrice Aragno, que, depois de reassistir o filme conosco há dois dias, destacou que esse casal estava no centro do filme, que estava bem no meio.

JLG: Sim, talvez. Eu não pensei nisso. Cada um pensa em tudo isso como deseja. Quando assisto novamente e penso sobre isso, também estou pensando em outras coisas e isso é bom. E aí, se não me engano, tem uma cena em que vemos uma avó e uma neta atrás de um caminhão que está indo embora. E "Terra" está escrito lá.

D: Sim, essa é a Alyonka, do Barnet.

JLG: É Alyonka, sim. Não é Dovzhenko, mas “Terra” está escrito lá.

D: Isso vem de Histoire(s) du cinéma.

JLG: Sim. Reutilizei muitas vezes coisas da Histoire(s) du cinéma, mas muitas vezes com sons diferentes.

D: Isso é uma legenda que aparece no filme (apontando para um prato pintado na prateleira)?

JLG: “Imagem e Palavra”? Sim, acho que aparece uma vez. Eu não me lembro.

D: Gostamos muito do filme junto com aquele que tem o título; é uma grande imagem, mas também é uma metáfora: a palavra vira imagem.

JLG: Sim e depois a imagem vira discurso. Isso também vem de... não sei se você sabe, anos atrás Anne-Marie escreveu um pequeno livro chamado Images en parole (Imagens em Palavra) (mas "imagem" no plural e "palavra" no singular). Eu posso dar a você. [Ele traz o livro cujo título está desenhado com marcador preto.].

São pequenas histórias que falam de algumas pessoas que moram aqui. E eu escrevi o prefácio. (4) Há uma cena do livro no filme.

D: O Oriente Médio já existia logo no início do seu projeto?

JLG: Não me lembro. Não, acho que não, não logo no início, mas rapidamente. Era Arabia e Arabie heureuese (5)porque me lembrei de um... No final do século XIX, "Arabie heureuese" era um termo usado com frequência pelos escritores franceses, os Saint-Simonianos e similares. E lembrei-me de um livro de um americano, Frederic Prokosch, que se chamava em francês Hasards de l’Arabie heureuse. (6)

D: Que você cita no filme e que deveria ser colocado no chão na primeira sala do seu projeto Collages de France. (7)

JLG: Não me lembro. Mas você sabe melhor do que eu. [Ele ri.]

D: Há também a sequência em Histoire(s) du cinéma onde você conecta a infância do cinema com a arte dos saint-simonianos, com um sonho do Oriente...

JLG: Sim, mas isso é porque um dos líderes ou porta-voz dos Saint-Simonianos se chamava Enfantin. (8)

D: Sim, sim. E você fala sobre a ferrovia aqui também. (9)

JLG: Mas isso vem do meu avô materno porque ele construiu a ferrovia na Esmirna turca, em uma pequena cidade chamada Cassaba. E Cassaba foi o nome do meu primeiro cachorro. Meu avô era muito rico. Ele pertencia ao... Ainda me lembro que se tornou o Banque de Paris et des Pays-Bas, que hoje é um banco muito conhecido, mas costumava ser chamado de Banco Otomano. 10

D: Le Livre D'Image lentamente se tornou um empreendimento arqueológico, como você diz. Você tomou esse novo rumo na companhia de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, dois cineastas italianos cuja presença no filme é bastante significativa.

O artigo Notre caméra analytique (Nossa Câmera Analítica) começa com estas palavras: “Viajamos enquanto catalogamos, catalogamos enquanto viajamos”. Você cita pelo menos três cenas de seus filmes, incluindo uma de um trem entrando em um túnel e outra de um rolo de filme se desenrolando...

JLG: É um filme americano, eu acho, ou inglês... [Ele procura a cena em um grande caderno contendo uma espécie de roteiro do filme com anotações.] Aqui se chama Reel-Unreel.

D: Sim, mas estou falando de outra dose. Está no início de Remakes: um filme que está sendo desenrolado.

JLG: Um filme? Isso é relaxar? Sim, esse é o filme dos dois italianos.

D: E parece um pouco uma estrada sem fim.

JLG: Sim.

Godard manipulando a película. Godard sempre foi um artesão do Cinema, recusando-se a trabalhar em um sistema industrial, de estúdios, do qual ele seria apenas um funcionário a mais. Godard sempre controlou as diferentes etapas da realização de um filme: pré-produção, filmagem e pós-produção.

D: Você adiciona som de outro filme, um documentário sobre músicos de rock cujo nome esqueci, mencionando Orfeu voltando de sua longa viagem. Sendo também um filme de arquivo, podemos pensar que é uma viagem ao passado...

JLG: Ah, não penso em nada disso. São vários filmes que me foram dados por dois franceses, um deles está nos créditos, cujo nome é Nicole Brenez, e o outro se chama... Ha, assim que procuro uma palavra, ela corre longe como uma formiga. E então, de repente, volta três meses depois. Não, esqueci... Bernard Eisenschitz! Que é especialista em cinema russo e quem me deu um ou dois filmes russos.

D: Achei que tinha a ver com arqueologia porque Gianikian e Ricci Lucchi fazem exatamente isso, procuram algo no passado para iluminar o presente.

JLG: Sim.

D: No seu trabalho é um pouco a mesma coisa, exceto que, seguindo a ideia de Benjamin das constelações entre o passado e o presente, você introduz diretamente esse presente que precisa ser iluminado: você mostra imagens de combatentes islâmicos na primeira parte, Refaz...

JLG: Sim, mas isso só acontece porque um “remake” é uma cópia. No filme de Rossellini vemos pessoas atiradas ao mar e depois, no filme islâmico, vemos-nas novamente atiradas ao mar. Enquanto o filme de Rossellini [Paisa] acaba de dizer “La guerra era finita”. [Ele ri.] E isso é tudo. Eu não vejo mais nada.

D: E, no entanto, há duas imagens de combatentes islâmicos na primeira parte: uma é documental, enquanto a outra é tirada de um...

JLG: ... filme de ficção.

D: Timbuktu, de Sissako. Seu terreno arqueológico inclui também todo o imaginário.

JLG: Sim, sim, claro.

D: Então não foi a situação atual no Médio Oriente que o levou a olhar para esta região?

JLG: Não. É que o mundo árabe, sem conhecê-lo bem, desde a minha infância sempre falou muito comigo.

D: Mas por que fazer hoje um filme sobre a Arábia?

JLG: Ah, bem, poderíamos dizer que funciona bem. Isso vem de mim. De mulheres árabes que eu estava apaixonado e depois não deu certo, coisas assim. Mas havia algo de que gostei nos árabes. E depois, na época do meu avô, com o cão Cassaba, o meu avô tinha motorista e esse motorista era argelino.

Eram burgueses muito ricos e comíamos em pratos decorados com cenas da conquista da Argélia. Tudo isso deve desempenhar um papel. E já que falamos hoje sobre o Oriente Médio. Há muitas coisas assim. Eu tinha um tio que era capitão de não sei o quê e que fazia parte do... Na Síria, antes da guerra, quando a Síria era um protetorado francês, enquanto o Iraque era um protetorado inglês. Tudo isso.

D: Isso vem mais de dentro do que das notícias.

JLG: Sim, mas as novidades entram nisso. Isso me lembra disso. Acompanho um pouco os acontecimentos no jornal. Com Anne-Marie, a suíça, não sabemos, somos um pouco refugiados franceses. Ela veio para cá por causa da filha, para a escola, etc. E na verdade, se assistirmos TV, é TV francesa e se lermos os jornais, são jornais franceses. Lemos três: Libération, Le Canard enchaîné e...

D: Charlie Hebdo?

JLG: E Charlie Hebdo.

D: Você não está feliz aqui?

JLG: Para as paisagens sim, que são mais fáceis... E não tínhamos... Anne-Marie é de Lausanne, sempre estive entre Paris e aqui, e a costa do outro lado do Lago Genebra, na costa francesa. Quando saímos de Paris, tentamos Grenoble, mas não funcionou. 

Então, não tínhamos realmente um lugar, enquanto aqui ainda existe um lugar antigo. Meu pai é cidadão suíço naturalizado, veio se instalar aqui numa clínica ao lado e onde também fui atendido. Poderíamos ter ido para França, mas não sabíamos onde, são cem mil lugares. E aqui, tivemos um que foi... Bom, em determinado momento a gente ficou. 

Não gostamos muito dos suíços, tirando uma ou duas pessoas simpáticas e sobretudo os cães.

D: E Ramuz, eu acho.

JLG: Ramuz também vem desde a infância. Porque me lembro dos livros do Ramuz que líamos com o meu avô, que gostava de literatura. Nós os lemos em voz alta juntos.

Cena de 'Johnny Guitar' (1954), de Nicholas Ray, que Godard usou em 'Imagem e Palavra'. Godard escreveu uma frase que ficou famosa, dizendo que 'Nicholas Ray é o cinema'.

D: Mas você não gostaria de voltar para a França?

JLG: Ah, de jeito nenhum. Mas às vezes digo a mim mesmo que gostaria que Rolle estivesse na França.

D: Gostaríamos de voltar a Sissako, seu filme Timbuktu...

JLG: Sim, é um bom filme.

D: Parece cumprir um papel de testemunha que você considera muito importante, senão essencial, para o cinema. Mas cumpre também o papel de ser cinema no sentido em que se distingue entre cinema e filmes?

JLG: Isso vem dos Cahiers du cinéma, da Nouvelle Vague onde gradualmente em relação aos filmes à medida que eram feitos e até ao cinema à medida que era ensinado, gostávamos de pessoas como Epstein, por exemplo, ou Flaherty.

Epstein também porque escreveu muito sobre cinema: L'Intelligence d'une machine e assim por diante, que leio às vezes. Eu não sei muito bem. Eu sei...um fragmento, uma frase e pronto. Nunca li Dostoiévski inteiro, por exemplo, mas lembro de algumas coisas. Li Vasily Grossman a sério, gostei muito... 11 

Além disso, ele não é muito conhecido. Brodski também não é muito conhecido. Lembro-me de um livro de Brodski chamado Byzance, que é muito bonito. E os russos sempre... Ainda sou um pouco a favor dos russos contra todos os outros. Mas isso vem, sei lá, de romances, de música... não sei muito de música, nem de pintura...

D: Em Remakes você conecta imagens de guerra ou tratados de paz com imagens de casais. Por exemplo, Depardieu diz a Laurence Masliah: “Esta é a nossa primeira discussão”, depois há tiros de Timbuktu e Les Carabiniers onde uma arma se interpõe entre o homem e a mulher. 

Essa conexão também está presente em Adeus à Linguagem e Os Três Desastres, eu acho.

JLG: Sim. Isso também pode vir de mim porque fui casado duas vezes. Nunca deu certo e foi muito melhor assim porque... eu só tinha interesse lá fora. E então, acho que as jovens de quem eu gostava estavam interessadas principalmente porque eu era famoso. Então duraria um ano e meio, dois anos, não mais.

D: Fabrice Aragno nos disse há dois ou três anos que uma versão do título incluía a palavra “viagens”. Na época, você queria rodar parte do filme em São Petersburgo, e várias cenas foram filmadas na Tunísia. Você planejou outras viagens?

JLG: Não. Escolhi a Tunísia porque sabia, lembrei-me de uma atriz... [Ghalia Lacroix, que faz o papel de Djamilia em For Ever Mozart e que aparece várias vezes em Imagem e Palavra].

Aí me disseram que ela deixou o marido, um diretor muito conhecido na França chamado Kechiche. Na época de For Ever Mozart ela já estava com Kechiche. A certa altura disseram: ela foi para a Tunísia.

Eu descobri isso e então tínhamos alguém que conhecíamos lá que nos deu dois ou três endereços de onde filmar e assim por diante. Foi assim que a Tunísia foi feita. Preferia ter escolhido a Argélia, tenho uma espécie de sentimento pela Argélia, como expliquei. Mas não teria sido possível.

Os argelinos são muito especiais... Os tunisianos são muito gentis, não sei quanto aos marroquinos, mas os argelinos são... [Ele cerra o punho e faz uma cara séria.]. Eles são diferentes. Além disso, aquele que você vê no filme, que é sobrinho do Sheik Ben Kadem, 12 é uma foto tirada durante a Guerra da Argélia de um combatente argelino.

D: Então La Marsa é por causa dessa mulher?

JLG: Não, ou um pouco, mas na verdade não. Mas tínhamos alguém que eu conhecia... há quantos anos?... Doze ou quinze anos, num filme.

D: Tem também o Salammbô.13

JLG: Tem Salammbô, sim. Há até Luís IX, São Luís, que morreu em Cartago.

D: Ah, sim. Mas você não estava planejando ir para La Marsa?

JLG: Fui, fui três vezes com Fabrice [Aragno] e Jean-Paul [Battaggia] para filmar coisas a torto e a direito. Sem realmente saber o que resultaria disso. Depois veio aos poucos.

D: Você mesmo filmou algumas cenas?

JLG: Muito poucos. Um ou dois, eu acho. Não, foram Fabrice e Jean-Paul.

D: E essas duas ou três cenas estão no filme?

JLG: Uh... [Ele pensa.]... Tem uma. Foi simplesmente... Sim, pode ser de... [Ele ri.] O hotel ficava de frente para a praia e, sim, tinha uma rua. Talvez uma imagem como essa, do quarto do hotel. E então a imagem das palmeiras em movimento. Esse é outro hotel. Mas é isso. [Ele ri.]

Cena de 'Vertigo' (Um Corpo que Cai; 1958), de Hitchcock, que Godard usa em 'Imagem e Palavra'.

D: Você não sabia de antemão o que precisava ser filmado?

JLG: Não, de jeito nenhum. O que filmamos deve ser nutritivo ou não. É mais como os pintores quando eles dão um passeio e fazem... Gosto muito das aquarelas de paisagens e cidades do Delacroix. Ele fez muitos delas.

D: No roteiro havia muitas cenas filmadas na Tunísia especialmente para o filme. Poderíamos ter imaginado que L'Arabie heureuese fosse composto principalmente por eles. Na realidade, não são tantos.

JLG: Sim, há menos porque há principalmente cenas tiradas de filmes árabes, especialmente filmes tunisianos. Porque há um distribuidor não muito longe daqui, em Friburgo, um pouco mais longe de Lausanne, a caminho de Berna, chamado Trigon, especializado em filmes do Magrebe. E perguntamos se podíamos comprar tudo o que tinham do Magreb.

D: E você assistiu todos eles?

JLG: Sim. É isso que leva mais tempo, ver o que filmamos ou o que existe. [Ele ri.]. Isso leva muito tempo. E às vezes você pega alguma coisa e dois meses depois descobre que não é bom, mas você colocou aquilo no momento e pega outra coisa. Por exemplo, a foto da garota chorando em determinado momento de L'Arabie. Ainda tenho muitos filmes tunisianos e argelinos que não vi. Se eu os tivesse visto, poderia haver algo mais lá.

D: Imagino que também houve alguns filmes muito ruins.

JLG: Ah, sim, muito ruim, mas isso não fez diferença, eu não estava procurando filmes bons ou ruins como no passado, mas sim alguma coisa.

D: Na terceira parte dedicada às viagens, há um poema de Baudelaire que o senhor já citou diversas vezes e que se chama Voyage, um trecho curtíssimo onde Baudelaire parece estar falando de cinema antes de cinema.

JLG: Sim, sim, exatamente.

D: “Mostre-nos, como se esticado sobre uma tela, sua lembrança nas molduras de seus horizontes.”14

JLG: Em francês, no passado, para dizer “vamos ao cinema esta noite”, diríamos “estamos comprando uma tela para nós mesmos”.15 E então uma tela também é uma pintura. Não, não, exatamente. Todo o final do século XIX é o início do cinema antes de Lumière, a rigor. A tecnologia veio depois. Aqui, agora, vem primeiro, então as coisas estão um pouco invertidas.

D: No seu trabalho muitas vezes há ideias e citações que retornam, mas às vezes você também diz as mesmas coisas com citações diferentes e vice-versa.

JLG: Sim, certamente.

D: Vejo algo assim na sequência de Baudelaire. Algumas linhas depois, Baudelaire diz: “É o sábio amargo, que vai viajar! O mundo, monótono e pequeno, faz-nos ver a nossa imagem”.

JLG: Está na Histoire(s) du cinéma.

D: Sim, sim, mas aqui você meio que diz a mesma coisa sem citar Baudelaire. Ele fala do mundo monótono e você tira um trecho da trilha sonora de um filme, não sei qual, onde alguém diz que mesmo entre os comunistas o dinheiro conta mais.

JLG: Sim. [Ele ri.]

D: Eu diria que é mais ou menos a mesma coisa, essa monotonia das viagens...

JLG: Sim, certamente. Eu ainda gostaria muito de viajar, mas a tecnologia seria necessária para... Podemos nos mover com o que agora chamo de linguagem ou com a cabeça, como quisermos, mas se houvesse um foguete que pudesse me levar a algum lugar certo longe, aqui, eu faço isso... [Toca a tela do smartphone.]

Se eu colocar "Vladivostok" aqui e apertar aqui, eu fico aqui, não vou para Vladivostok. Isso me deixa triste. E então, ao mesmo tempo, eu sei que quando você estiver em Vladivostok, bem, você pressiona aqui novamente e depois coloca "Berlim"... 

Porque toda vez que saio de férias com Anne-Marie - nós não vamos mais, mas... — depois de um dia, a única coisa que queremos é ir embora de novo. Na verdade, é a viagem em si que é legal. No passado... na Rússia, ainda deve haver trens noturnos. Não há mais aqui na Europa.

D: Sim, existem. Na Itália.

JLG: Na Itália? Eu gostei daquilo. Porque você vai para a estação de trem, deita na cama e já de manhã está em algum lugar. E então, à noite, você volta para a cama no trem e vai embora. Isso é o que chamo de uma boa viagem.

Cena de um filme clássico de Hollywood que Godard usa em 'Imagem e Palavra'. Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette Rohmer eram grandes admiradores do cinema clássico de Hollywood, dos anos 1930, 1940 e 1950.

D: Talvez seja esta monotonia do mundo que lhe permite falar do Médio Oriente de hoje referindo-se a autores europeus dos séculos XVIII e XIX, como Joseph de Maistre por exemplo e o seu conceito de “guerra divina”, que nos traz de volta ao que está acontecendo na Síria ou em outro lugar....

JLG: Agora eu não conseguiria ficar muito tempo no Oriente Médio. Mas eu fui lá em um momento quando estávamos fazendo Ici et alleurs. Fui lá quatro ou cinco vezes. Conheci pessoas em Beirute e na Jordânia, fedayeens, incluindo este poeta que morreu, mas que ouvimos com sua bela voz em determinado momento. Não sei o que ele diz, mas...

Obs: Fedayeens são os guerrilheiros palestinos que lutam para recuperar as suas terras, das quais foram expulsos por Israel a partir das primeiras décadas do século XX, em função da Declaração Balfour de 1917.

D: No filme?

JLG: Sim, no filme, quando vemos os mortos e ouvimos sons de metralhadora e depois ele recita em árabe, é muito bonito. 17 Gosto muito de árabe. Não falo, mas acho que é muito mais musical do que o francês, o alemão ou outras línguas.

D: Você nos perguntou sobre o que [Vladimir] Vissotsky está falando na música que você cita. Chama-se Wolf Hunt. 18 Na verdade não é muito fácil traduzir Vissotsky porque ele usa a linguagem de uma maneira muito especial, eu diria que é poética, mas também lembra canções de prisão. Vou tentar de qualquer maneira...

JLG: Não, não, de jeito nenhum. Estou bem em deixar isso... só preciso aprender o idioma. Se eu não aprender o idioma... sou contra legendas, por exemplo.

D: Sério?

JLG: Porque você não tem tempo de olhar a imagem se ela for interessante. Então, todo filme é legendado porque as imagens não são interessantes. E uma história tem que ser seguida. É sempre uma história sobre um homem que conhece uma senhora e depois surgem problemas, etc.

Então, você precisa de legendas. E aí você lê o texto, mas se o texto e a imagem são interessantes ao mesmo tempo, isso é desinteressante. Não, sempre fui a favor de uma versão dublada, não com narração, mas com dublagem, mas bem feita.

E isso requer tanto dinheiro quanto o filme original. Você tem que encontrar as vozes e tudo mais, então não está feito. Isso é feito um pouco na França para o que eles chamam de blockbusters, grandes filmes, etc. Então eles fazem uma versão dublada que é ainda menos interessante que a versão original.

D: Mas o que você faz com o som tem que ser ouvido, é um pouco como música.

JLG: Sim, é como música. As pessoas não se incomodam em não entender na ópera. Geralmente na ópera você não entende o que o cantor está cantando, mas no cinema você tem que entender. Bem, entenda um pouco estupidamente: que um cavalheiro conhece uma senhora e tudo o mais, e isso é desinteressante.

D: Com relação à dublagem, acho quase impossível fazer bem. Ou você deve fazer isso sozinho.

JLG: Sim, mas não é interessante porque se você dublar, todos os sons que vêm de línguas diferentes...19 É como se você estivesse dublando um filme onde só havia música e toda vez que havia um piano, você dublaria com um violino. [Ele ri.].

D: É um beco sem saída, então.

JLG: Sim, mas o único beco sem saída é mostrar... E se isso faz as pessoas quererem aprender línguas, isso é muito bom.

D.: Esse é exatamente o nosso caso.

JLG: A tradução é um pouco útil. Todos os livros que li... Se li O Idiota, de Dostoiévski, é em francês, mas sei que estou perdendo muito. Mas ele tem tanto talento que, apesar da tradução, você é capturado, por assim dizer.

D: Voltando a Vissotsky, como você encontrou essa música?

JLG: Ouvi porque era uma espécie de — como se diz em russo? — pretendente da atriz Marina Vlady. E Vlady era a esposa de Vissotsky. Então isso me lembrou...

Por isso encontrei um filme com a imagem de Marina Vlady ao lado de um velho xeque. Não está muito claro porque eu não queria fazer mal a ela e assim por diante, mas... eu briguei muito com ela porque ela só fazia filmes ruins.

Vídeo que mostra membros do grupo extremista 'Estado Islâmico' assassinando pessoas e as jogando no mar. Em 'Imagem e Palavra' Godard usou de imagens semelhantes de 'Paisà', clássico do Neorrealismo italiano dirigido por Rossellini.

D: Ainda assim, é surpreendente que você não soubesse do que trata a canção de Vissotsky porque ela corresponde perfeitamente ao tema da quarta parte, L'Esprit des lois (O Espírito das Leis), onde aparece. É sobre regras e quebra de regras para sobreviver.

JLG: Mas eu sabia que havia poetas e cantores de protesto russos, Mayakovsky, Mandelstam, Yesenin e outros mais tarde que não conheço... E depois todos os livros deste período e os escritores que deixaram a Rússia , etc. Fiquei muito interessado nisso, um pouco como se fosse minha família de certa forma.

E então Vissotsky era um poeta de protesto, um cantor de protesto, então não tinha nada a ver com Marina Vlady. E descobri que correspondia muito bem ao personagem camponês um tanto louco de 'Terra'. Isso é tudo.

D: Na primeira versão do filme que vimos há dois anos, o logotipo do Wild Bunch ainda estava lá. Já se foi. Você pode nos contar a história de sua separação?

JLG: Sim, as coisas estavam indo bem. E então, a certa altura, há seis meses ou um pouco mais, eles fizeram um monte de negócios ruins, muitas vezes produziam filmes muito ruins e perderam muito dinheiro. Eles não tinham mais nada e não podiam nos pagar o que deviam.

Então tentamos deixá-los, conseguimos, e aí recomeçamos daqui. Isso é tudo. E então, eles não estavam nem um pouco interessados no filme. Eu deixo, foi combinado: você me dá tempo, depois faz o que quiser, não me importa.

Eles viram o filme quando ainda não estava terminado e perceberam que não sabiam o que fazer com ele. Só conseguiam pensar em como lançá-lo em um ou dois cinemas ou quatro cinemas... Isso não vale nada.

Com este, mesmo que vinte pessoas vejam apenas uma vez, eu quero que seja realmente uma vez e que as pessoas vejam, só isso.

D: Agora que o filme foi adquirido pela Casa Azul, da empresa Fabrice Aragno, você pode exibi-lo do jeito que quiser.

JLG: Sim. Não estamos procurando dinheiro. Estamos olhando em volta, precisamos de um pouco de dinheiro para nós, assim como você e assim por diante, mas isso é tudo.

D: Acho que você está procurando há muito tempo esse tipo de estrutura financeira, uma espécie de autoprodução...

JLG: Não, isso aconteceu gradualmente. Porque meu primeiro filme, 'Acossado', bem, meu primeiro grande filme, me incomodou porque deixei meus pais e encontrei um produtor que agia como meu pai. Quero dizer, digamos, eu te dou isso e você faz isso.

E assim, aos poucos, aprendi a gastar dinheiro, pelo menos para ter o direito de gastar dinheiro eu mesmo com o filme, sem pedir mais. E depois, para ter... Era preciso ter regras, tudo isso... Então ter uma produtora e depois com a produtora descobrimos que tem regras, o estado, tudo, e a gente também não conseguiu. [Ele ri.]

D: Mas agora você está um pouco mais livre para fazer o que quiser.

JLG: Somos livres para fazer ou não fazer qualquer coisa. Ou ser incapaz. E também estou cansado, não quero mais ou não sei. Porque se eu ganhasse na loteria não faria mais filmes.

D: Sério?

JLG: Sim. Talvez um pequeno filme, alguma coisa, mas não sei. Não, ainda assim... Tem hora que a gente tem que parar porque depois é... não é mais a mesma coisa.

D: E ainda assim, realmente esperamos que você continue. Voltando à distribuição do The Image Book, você disse que preferia exibi-lo em pequenos cinemas e antes em um teatro do que em um cinema.

JLG: Pequenos teatros ou centros culturais ou circos...

D: Talvez em museus?

JLG: Sim. Pode ter alguma coisa no Centro Pompidou de novo, mas não sei, ainda é muito... establishment. 20 E depende se nos derem dinheiro ou não.

Cena de um filme de guerra que foi usada por Godard em 'Imagem e Palavra'.

D: Você quer que seja exibido em uma tela grande ou em uma tela de TV?

JLG: Não, não, deveria ser antes uma tela de TV, mais ou menos grande, e pelo menos com dois alto-falantes um pouco afastados da tela para que não haja a tentação – que é muito grande —de acreditar que o que você ouve é o que está acontecendo.

Mas quando isso acontecer na TV, será o som da TV para as pessoas, não há nada que possamos fazer. Isso vem de muito tempo atrás, desde Lumière e assim por diante: acreditávamos que o que víamos era a realidade.

E então isso continua até hoje. Tentamos mudar a imagem, para usar o 3D.

Eu usei 3D também em algum momento para... Mas com o 3D no último filme, tentei fazer a diferença entre a fala e a imagem, nem sempre usando o som da imagem, se quiser. Se passar um carro ou uma ambulância ou qualquer outra coisa, não vale a pena usar o som. Outro som é necessário.

D: Você não acredita mais na ideia de que na tela da TV nunca vemos filmes, mas apenas reproduções?

JLG: Não, não penso mais assim. O que me incomoda na tela, seja ela de TV ou de computador, é que o som acompanha a imagem e acreditamos no que estamos vendo. Isso é publicidade. Se lhe mostrarmos um Mercedes dirigindo e a voz disser: “Compre um Mercedes”, não, isso... Aos poucos vai ficando assim.

E por enquanto, eles não podem mais escapar, seja assim ou talvez em pequenas apresentações teatrais ou nas canções de Vissotsky. [Ele ri.] Agora é por aqui, na internet ou em outro lugar... ou até no cabeleireiro. Você não pode ir ao cabeleireiro e fazer o cabelo do jeito que você quer. É impossível.

D: Por isso você prefere teatro, para poder fazer algo diferente...

JLG: O pessoal do teatro está acostumado a encontrar uma mesa se não houver; se não tiver projetor, bem, nós montamos; se o alto-falante precisar ser movido, podemos fazê-lo. Eles estão prontos para fazer isso. É a essência do teatro, por assim dizer. Não são grandes teatros, etc., mas é possível.

Então, lugares assim, mas ponto por ponto: primeiro um pouco na Suíça e depois talvez uma ou duas vezes na França. Mas isso é tudo, isso é tudo. E então, de qualquer forma, o produtor francês manteve os direitos de quase todos os países do mundo.

Então o filme será exibido da maneira antiga por lá. Num cinema normal eles não ouvirão o som como aqui. É como se fosse música, e aí... em vez do quarteto de Beethoven, não sei, ou você ouve os panes ou alguma outra coisa. (Ele ri.)

D: Mesmo assim, você manteve os direitos de alguns países como Tunísia, Argélia e Grécia...

JLG: Sim, mas também não vai dar certo... Mas eu posso dar os direitos para essa velha atriz por amizade, depois dizer para ela tentar vender, para você, vai te render um pouco de dinheiro, eu ficaria muito feliz. Aí em certos momentos eu dizia:

“Convide as pessoas e mostre. Faça-as pagar um ou dois dinares...” Ou um copeque. Como estou dizendo para São Petersburgo.

Vamos exibi-lo num pequeno teatro em Lausanne onde pode haver apenas esta instalação, mesmo que seja muito... apenas a tela e dois alto-falantes. É um teatro em Vidy que é muito conhecido e que tem três ou quatro salas grandes, mas vamos exibi-lo numa sala bem pequena.

Além disso, talvez você se lembre, foi onde filmei o início de For Ever Mozart. Há outro diretor agora, mas que concordou em fazer isso.

D: Você não tem mais interesse em fazer trailers? 2

JLG: Não. O filme é um trailer.

D: E antes era mais por necessidade ou...

JLG: Sim, claro, mas porque gostei, gostei de estar naquele mundo, e então não se estava tão sozinho, se você quiser. Entre o... o que se chamava de cinema jovem francês, que foi o início do cinema francês adulto em relação ao mais antigo e assim por diante.

Mas havia italianos, havia alemães, canadenses, brasileiros; então você tinha uma espécie de... como dizem, uma irmandade do bom cinema. Eu não conhecia muito bem os russos, mas em Deux fois 50 ans de cinéma français falamos sobre...qual era o nome daquela mulher... esqueci. Não, não, os filmes da época eram muito ruins. Eu realmente não gosto de Tarkovsky ou...

D: E você quase nunca o cita, exceto 'O Sacrifício'.

JLG: Sim, uma cena.

D: Há seis meses, um de seus filmes da década de 1980, The Rise and Fall of a Small Film Company, foi lançado nos cinemas pela primeira vez. Alain Bergala descreve-o como um filme-catástrofe que trata de uma situação fatal insolúvel, mas também já era um filme de resistência. Há uma cena no final em que os figurantes são questionados sobre o que é...

JLG: Essencial.

D: Sim. E o personagem de Léaud responde: “Não são os nossos sentimentos ou as nossas experiências vividas, mas a tenacidade silenciosa com que os afrontamos”.

JLG: Não sei de quem é isso. Pode ser Faulkner. Não me lembro de metade das coisas. Muitas vezes há frases como essa... em muitos romances ruins ou coisas assim, encontro uma frase que não é ruim, que é muito filosófica.

'Imagem e Palavra' contém inúmeras imagens, vídeos e cenas que remetem a lutas políticas e sociais, conflitos e guerras.

D: E você também termina Le Livre D'Image com uma passagem sobre a resistência. E esperança.

JLG: Sim, isso foi retirado do livro de Peter Weiss.

D: “Mesmo que nada acontecesse como esperávamos, não teria mudado o que esperávamos.”

JLG: É muito otimista e além disso é o que penso.

D: Embora o filme seja geralmente bastante... Não sei se se pode dizer sombrio, mas ao contrário de Rise and Fall e da maioria dos seus outros filmes, quase não há humor nele.

JLG: Sim. Não, a frase: “Mesmo entre os comunistas, só o dinheiro tem valor”. Acho que isso é... [Ele ri.] Isso é de um filme americano ruim de esqueci quem, etc.

D: Também no filme está a frase: “Acredite, nunca ficamos tristes o suficiente para que o mundo melhore”.

JLG: Sim, esse é - ele é conhecido, talvez você o conheça - Elias Canetti.

D: Sim, sim.

JLG: E “terra” também, o verso: “A terra asfixiada pelas letras do alfabeto...” e tudo isso, esse também é Elias Canetti.

D: A Melencolia de Dürer estava no roteiro...

JLG: Sim, isso desapareceu.

D: Recentemente deparamo-nos com duas interpretações dessa gravura. Um é de Giorgio Agamben. Ele parte da famosa interpretação de Benjamin de um dos anjos de Paul Klee como o anjo da história 22 para, por sua vez, considerar o anjo de Dürer como o anjo da arte.

O primeiro é empurrado para o futuro pela tempestade do progresso, mas está voltado para trás, de modo que está eternamente condenado a olhar para o passado, que vê como um amontoado de ruínas; enquanto o outro está imóvel, poderíamos dizer fora do tempo, e rodeado de objetos que não estão em ruínas, mas que, no entanto, estão privados de suas funções. É precisamente assim que se tornam obras de arte.

Isso me lembra uma frase de Hollis Frampton que você cita no filme: “nenhuma atividade pode se tornar uma arte até que sua época adequada termine”.

JLG: Sim.

D: A outra interpretação é a de Elie Faure.

Ele escreve:

“Na 'Melencolia', que parece resumir toda a sua obra, vê-se o gênio da humanidade abatido pela lassidão, com todas as suas conquistas, porque, apesar das suas grandes asas, nada aprendeu do essencial.

Tal como Fausto, Albrecht Dürer percorreu todos os mundos, em busca da ilusão que nunca foi capaz de agarrar." 23 

Esta é uma avaliação bastante pessimista.

Pelo contrário, para você, esse fracasso e essa impossibilidade servem muitas vezes como um ponto de partida que paradoxalmente abre um caminho. Como se diz em Ascensão e Queda, se alguém está numa época em que não consegue ter sucesso, pode sempre tentar, fazer esforços.

JLG: Sim, claro. Sim, mas essa imagem do anjo do Dürer, o anjo da Melencolia me fez pensar... Estava pensando em usar e aí percebi outras coisas: se ele era melancólico... Na verdade, ele não é realmente melancólico, porque caso contrário, fazemos o que Agamben ou outros fazem, mesmo Elie Faure e assim por diante, ou Freud: tentamos interpretar.

E escrevem-se livros grandes e livros pequenos, enfim, escrevem-se textos.

Enquanto para mim, na verdade, o que deixa o anjo melancólico é o que ele está vendo. Mas isso não vemos. E foi aí que pensei: ele está saindo com um casal. E foi aí que pensei no casal de ‘Terra’ que ainda desperta um pouco de melancolia.

Obs: 'Terra' é o filme de Aleksandr Dovzhenko, de 1930.

E o texto acima é retirado de um livro de Maurice Blanchot chamado Awaiting Oblivion. É um texto dele que... Eu tinha filmado uma sequência antes em Sarajevo e foi uma pena... Não usamos, não foi nada bom, era muito cedo. 24

Belíssima imagem de 'Imagem e Palavra'.

 NOTAS

Esta entrevista foi conduzida em Rolle, em 21 de Março de 2018, por Dmitry Golotyuk e Antonina Derzhitskaya.

Agradecimentos a Jean-Luc Godard, Fabrice Aragno e Julien d'Abrigeon.

Apareceu originalmente no site Débordements. Tradução de Ted Fendt.

Agradecimentos a Marie-Pierre Duhamel Muller pela revisão desta tradução.

Imagens: Transparências (Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, 1998); 

O Livro de Imagens (Jean-Luc Godard, 2018) / A maquete da sala L'Arabie heureuese vista na Reportage amador (maquette expo) de Godard e Anne-Marie Miéville (2006); 

Algumas das imagens também aparecem no The Image Book (a foto de uma família argelina e duas aquarelas de August Macke pintadas na Tunísia em 1914); 

Souvenir d'utopie (Anne-Marie Miéville, 2006) / À peine j'ouvre les yeux (Leyla Bouzid, 2015); 

O Livro de Imagens / O casal de 'Terra' de Dovzhenko em Histoire(s) du cinéma 1b.

NOTAS

1. Veja a entrevista publicada aqui: 

http://www.debordements.fr/Jean-Luc-Godard-608

2. Nota do tradutor: esta é uma referência ao pintor francês Yves Klein e às suas pinturas azuis monocromáticas.

3. Nota do tradutor: Michael Snow (n. 1928) é canadense, não americano.

Cena de 'Imagem e Palavra' que remete à pintura. Godard foi pintor na juventude, antes de se tornar cineasta.

4. Sob o pseudônimo de Marcel C. O prefácio começa: “O autor hesitou. Palavra ou palavras. não é sobre isso. De jeito nenhum. Simplesmente o que pode ser singular na fala."

5. Nota do tradutor: o título é a tradução francesa do latim Arabia Felix, que pode ser traduzida literalmente para o inglês como "Arábia Fértil". https://en.wikipedia.org/wiki/Arabia_Felix

6. Nota do tradutor: o título original em inglês é Nine Days of Mukalla
(1953).

7. Este é o título do seu projeto expositivo no Centro Pompidou, descrito detalhadamente pelo próprio Godard no vídeo Reportagem amadora. É consideravelmente diferente da versão que foi finalmente concluída sob o título Voyage(s) en utopie, Jean-Luc Godard, 1946-2006.

8. Nota do tradutor: enfantin significa infantil em francês.

9. “Uma arte sem futuro, apontaram imediatamente os dois irmãos. [...] E então foram mal compreendidos. Disseram “sem futuro”, querendo dizer uma arte no presente, uma arte que dá, e isso recebe antes de dar, vamos chamá-lo de infância da arte. Além disso, qual era o nome do fundador dos Saint-Simonianos? Enfantin. Barão Enfantin. E se sonhavam com o Oriente, não o chamavam de Seda ou Rum Estrada, eles a chamavam de ferrovia.

Porque o sonho se endureceu e se mecanizou no caminho.”

(História(s) do cinema 1b). Há muitas fotos de ferrovias e trens no The Image Book.

10. Nota do tradutor: Godard brinca aqui de forma muito casual com a história. O Banco Otomano foi fundado em Istambul em 1863 pelo governo turco com a ajuda do já existente Banque de Paris et des Pays-Bas francês, que também ajudou na criação de vários outros bancos em França e na Europa.

Para mais informações (em francês): https://histoire.bnpparibas/document/la-banque-de-paris-et-des-pays-bas-paribas-au-carrefour-de-leurope-et-du-monde/

11. Uma linha de Life and Fate, de Grossman, está no The Image Book.

12. Samantar, personagem de L'Arabie heureuese retirada do romance 'Une ambição dans le désert' de Albert Cossery e presente no filme em uma foto.

13. O Salammbô de Flaubert começa: “Foi em Mégara, nos subúrbios de Cartago, nos jardins de Amílcar”. La Marsa, onde várias fotos de
L'Arabie heureuese foi filmado, é construído sobre o antigo Megara. Godard cita um(outro) trecho do romance do filme.

14. Nota do tradutor:  

http://www.tupeloquarterly.com/the-journey-i-iii-iv-v-vi-vii-by-charles-baudelaire-translated-by-lola-haskins/

15. Nota do tradutor: Godard está fazendo um trocadilho com o duplo sentido do toile francês, que significa tanto uma tela quanto uma tela de cinema.

Cena de 'Imagem e Palavra'.

16. Nota do tradutor: No poema de Baudelaire, os versos são: “É o sábio amargo, que vai viajar! / O mundo, tão monótono e pequeno hoje, / ontem, amanhã, para sempre, forçado a se ver”.

17. O trecho de áudio em questão é da trilha sonora de Ici et ailleurs, de Godard e Anne-Marie Miéville, e o poeta evocado é na verdade Khaled Abu Khaled.

18. Link: https://www.youtube.com/watch?v=TZWGRyPQUxs

19. Pelo menos 7 idiomas são ouvidos no filme: francês, árabe, inglês, italiano, alemão, grego e russo.

20. Numa entrevista recente Fabrice Aragno falou um pouco sobre um projeto que seria feito em quatro museus: além do Centro Pompidou, a Galeria Nacional de Singapura, o Museu Reina Sofia em Madrid e um museu em Nova Iorque.

Aragno descreveu o projeto como um “passeio dentro do filme” que acontece em três espaços: um dedicado ao som do Livro de Imagens, outro à imagem e os dois se encontram na sala principal.

21. O último trailer realizado por Godard foi para Filme Socialismo. O trailer de The Image Book, bem como a famosa série de trailers de Filme Socialismo onde todo o filme é visto acelerado foram feitos por Fabrice Aragno.

22. Como explica Fabrice Aragno na entrevista acima mencionada, o antigo diretor da Viennale, Hans Hurch, queria encorajar Godard a fazer algo baseado nesta imagem benjaminiana. O famoso "Godardologue" Alain Bergala vê uma referência a ele no final da versão original de Histoire(s) du cinéma 1b, onde havia outro anjo de Klee (ver seu artigo "L'Ange de l'histoire" em Nul mieux que Godard).

23. História da Arte, que Godard cita em Pierrot le fou, Histoire(s) du cinéma 4a (um longo trecho de vários minutos) e The Image Book (no final de uma linha).

24. Esta é aparentemente uma referência a Notre musique, onde há um breve diálogo de Awaiting Oblivion, semelhante ao de Goodbye to Language.

Jean-Luc Godard.

LINK: 

https://mubi.com/pt/notebook/posts/jean-luc-godard-2018-words-like-ants

Trailer de 'Imagem e Palavra' (201; legendado em português):

https://www.youtube.com/watch?v=NxekmNrD78o


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