Godard analisa a obra de Bergman de forma brilhante! Não se escrevem mais textos desse nível sobre Cinema!

Godard analisa a obra de Bergman de forma brilhante! Não se escrevem mais textos desse nível sobre Cinema!

Edição número 85, de Julho de 1958, que contém esse texto absolutamente brilhante de Jean-Luc Godard sobre a obra de Bergman.  

Bergmanorama, por Jean-Luc Godard!

Cahiers du cinema, nº 85, Julho de 1958.

(tradução: Artur Ianckievicz)

Na história do cinema, existem cinco ou seis filmes os quais adoramos criticar somente pelas palavras: “É o mais belo dos filmes!”. Porque não existe elogio mais bonito. Por que se estender falando de Tabu, Viagem à Itália, ou de A Carruagem de Ouro?

Como a estrela do mar que se abre e se fecha, eles sabem oferecer e esconder o segredo de um mundo do qual eles são, ao mesmo tempo, o único depositário e o fascinante reflexo.

A verdade é a verdade deles. Eles carregam-na profundamente em si mesmos e, no entanto, a tela se rasga a cada plano para semeá-la aos quatro ventos. Dizer deles: “é o mais belo dos filmes” é dizer tudo.

Porquê? Porque é assim. E esse raciocínio infantil, somente o cinema se permite utilizar sem falsa vergonha. Por quê? Porque ele é o cinema. E o cinema basta a si próprio.

De Welles a Ophüls, de Dreyer, de Hawks, de Cukor, mesmo de Vadim, para se gabar de seus méritos nos bastará dizer: é cinema! E quando o nome de grandes artistas dos séculos passados aparecem em comparação sob nossa pena, nós não queremos dizer nada além disso.

Imaginemos, por oposição, um crítico se gabando da última obra de Faulkner dizendo: é a literatura; de Stravinsky, de Paul Klee: é a música, é a pintura? Ainda mais com Shakespeare, Mozart ou Raphael.

Não faria parte das ideias de um editor, fosse ele Bernard Grasset, de lançar um poeta com o slogan: é a poesia! Mesmo Jean Vilar, enquanto consertava El Cid, enrubesceria ao colocar nos cartazes: “isso é o teatro!”.

Enquanto que “isso é o cinema!” mais do que uma senha, continua sendo o grito de guerra do vendedor, tanto quanto do amante de filmes. Ou seja, dentre todos os privilégios, o menor, para o cinema, com certeza não é erigir em razão de ser sua própria existência, e transformar, na mesma ocasião, a ética em sua estética.

Cinco ou seis filmes, eu disse, mais um, porque Juventude (Sommarlek, SUE, 1951) é o mais belo dos filmes.

O último grande romântico

O Sétimo Selo (1957).

Os grandes autores são provavelmente aqueles dos quais só sabemos pronunciar o nome, uma vez que é impossível explicar de outro jeito as sensações e sentimentos múltiplos que nos assaltam em determinadas circunstâncias excepcionais, diante de uma paisagem espantosa, ou em ocasião de um evento imprevisto: 

Beethoven, sob as estrelas, sobre uma falésia construída pelo mar; Balzac, quando, vista de Montmartre, Paris parece lhe pertencer; mas, daqui em diante, se o passado brinca de esconde-esconde com o presente no rosto daquela ou daquele que você ama; se a morte, quando chegar enfim a lhe fazer a pergunta suprema, você responda com uma ironia valéryana que é preciso tentar viver; daqui em diante então, se as palavras verão prodigioso, últimas férias, espelho eterno, reaparecem em seus lábios, é que automaticamente você pronunciou o nome daquele que uma segunda retrospectiva na Cinemathèque Française veio definitivamente, para aqueles que não haviam visto qualquer de seus dezenove filmes, de consagrar como o autor mais original do cinema europeu moderno: Ingmar Bergman.

Original? O Sétimo Selo ou Noites de Circo passe, a rigor Sorrisos de uma Noite de Amor; mas Monika e o Desejo, Sonhos de Mulheres, Rumo à Alegria, no máximo um sub-Maupassant, no tocante à técnica, falemos dos enquadramentos à la Germaine Dulac, dos efeitos à la Man Ray, dos reflexos n’água como não é mais permitido fazer de tão ultrapassado: “Não, o cinema é outra coisa” berram nossos técnicos patenteados; e, antes de tudo, é uma profissão.

Na verdade não! O cinema não é uma profissão. É uma arte. Não é uma equipe. Estamos sempre sozinhos, sobre o palco como em frente à página em branco. E para Bergman, estar só, é fazer perguntas. E fazer filmes, é respondê-las. Não saberíamos como ser mais classicamente românticos.

Com certeza, dentre todos os cineastas contemporâneos, ele é sem nenhuma dúvida o único a não renegar abertamente os processos caros aos vanguardistas dos anos 1930, que se arrastam ainda em cada festival de filmes experimentais ou amadores.

Mas é mais ousadia da parte do diretor de Sede de Paixões, porque Bergman destina essa confusão, com perfeito conhecimento de causa, a outros fins.

Esses planos de lagos, de florestas, de plantas, de nuvens, esses ângulos falsamente insólitos, os contraluzes excessivamente estudados, não são mais, dentro da estética bergmaniana, brincadeiras abstratas de câmera ou proezas de fotógrafo: eles integram-se, ao contrário, dentro da psicologia dos personagens ao instante preciso o qual se trata, para Bergman, de exprimir um sentimento não menos preciso; por exemplo, o prazer de Monika, atravessando de barco uma Estocolmo que acorda, depois sua preguiça invertendo o trajeto através da Estocolmo que dorme.

A eternidade ao auxílio da instantaneidade

'Sommarlek' ('Juventude', 1951).

No instante preciso. Com efeito, Ingmar Bergman é o cineasta do instante.

Cada um de seus filmes nasce de uma reflexão do protagonista sobre o momento presente, reflexão aprofundada por um tipo de alargamento da duração, um pouco à maneira de Proust, mas com mais poder, como se multiplicássemos Proust ao mesmo tempo por Joyce e Rousseau, e se tornasse finalmente uma gigantesca e desmesurada meditação a partir de um instantâneo.

Um filme de Ingmar Bergman é, se quisermos, 1/24 de segundo que se metamorfoseia e se estica durante uma hora e meia. É o mundo entre dois piscares de olhos, a tristeza entre dois batimentos de coração, a alegria de viver entre o bater de duas palmas.

De onde vem a importância primordial do flashback nesses devaneios escandinavos de solitários errantes. Em Sommarlek, é suficiente um olhar no espelho para que Maj-Britt Nilsson parta como Orfeu e Lancelot em busca do paraíso perdido e do tempo redescoberto.

Utilizado quase sistematicamente por Bergman na maior parte de suas obras, o flashback deixa de ser, então um desses “poor tricks” dos quais falava Orson Welles para se tornar, se não o próprio sujeito do filme, ao menos sua condição sine qua non.

Por baixo do mercado, essa figura de estilo, mesmo empregada como tal, tem, a partir de hoje a vantagem incomparável de sufocar consideravelmente o roteiro, uma vez que ela tanto constitui a história, quanto o ritmo interno e o esqueleto dramático.

Basta ter visto qualquer um dos filmes de Bergman para reparar que cada flashback termina ou começa sempre “em situação”, em dupla situação, eu deveria dizer, porque quanto mais forte é essa mudança de sequência, como em Hitchcock no auge da forma, corresponde sempre à emoção interior dos protagonistas, dito de outra forma, provoca a repercussão da ação, o que é um dos atributos mais fortes.

Tomaríamos por facilidade o que nada mais é que um acréscimo de rigor. Ingmar Bergman, o autodidata caluniado por seus “colegas de profissão”, ensina aqui uma lição ao melhor de nossos roteiristas. Vamos ver que esta não é a primeira vez.

Sempre à frente

'Noites de Cabíria' (1957), obra-prima de Fellini.

Quando Vadim apareceu, nós o aplaudimos por estar na hora exata quando a maior parte de seus colegas ainda estava uma guerra atrasados. Quando nós vimos as caretas poéticas de Giulietta Massina, nós aplaudimos também Fellini, a quem o frescor barroco trouxe uma boa renovação.

Mas, cinco anos antes, o filho de um pastor sueco já havia levado esse renascimento do cinema moderno ao seu apogeu. Com o quê estávamos sonhando então quando Monika foi lançado em telas parisienses? Tudo o que nós reprovávamos por não ter sido feito pelos cineastas franceses, Ingmar Bergman já tinha feito.

Monika já era E Deus Criou a Mulher, mas executado de maneira perfeita. E esse último plano de Noites de Cabíria, enquanto Giulietta Massina olha fixa e obstinadamente para a câmera, nós havíamos já esquecido que acontece também na penúltima bobina de Monika?

Essa brusca conspiração entre o espectador e o ator que tanto entusiasma André Bazin, havíamos nós esquecido já tê-la vivido, com mil vezes mais força e poesia, quando Harriett Andersson, seus olhos risonhos transbordando aflição voltados para a objetiva, nos tornando testemunhas do nojo que ela experimenta por optar pelo inferno ao invés do céu?

Um autor verdadeiramente original é aquele que não deixará jamais seus roteiros à sociedade do mesmo nome. Porque Bergman nos prova que o que é novo é exato, e será exato o que é profundo. Ou, a profunda novidade de Juventude, de Sede de Paixões, d’O Sétimo Selo, é de ter, antes de qualquer coisa, uma admirável exatidão de tom.

Para Bergman, com certeza, um gato é só um gato. Mas ele o é por outras tantas razões e esta é a menor das coisas. O importante é que, dotado de uma elegância moral a toda prova, Bergman pode se acomodar dentro de não importa qual verdade, mesmo a mais escabrosa (o último sketch de Quando as Mulheres Esperam).

É profundo o que é imprevisível, e cada novo filme de nosso autor desnorteia constantemente os partidários do precedente. Quando se espera uma comédia, segue um filme de mistério da Idade Média.

O único ponto em comum entre os dois é comumente essa liberdade incrível de situações às quais Feydeau apontava, como Montherlant poderia fazer à veracidade dos diálogos, ao momento também de supremo paradoxo, quando Giraudoux fará a mesma coisa quanto ao pudor.

Não é preciso dizer que esse desembaraço soberano na elaboração do manuscrito se duplica, desde que a câmera ronrona, em uma maestria absoluta na direção dos atores. Ingmar Bergman, nesse assunto, é o equivalente a um Cukor ou um Renoir.

É verdade que na maior parte seus intérpretes, que também fizeram parte algumas vezes de sua trupe de teatro, são em geral profissionais notáveis. Penso sobretudo em Maj-Britt Nilsson, de quem o queixo protuberante e os biquinhos de desprezo fazem lembrar Ingrid Bergman.

Mas é preciso ter visto Birger Malmsten como jovem sonhador em Juventude, e reencontrá-lo, irreconhecível, como burguês engomado em Sede de Paixões;

É preciso ter visto Gunnar Björnstrand e Harriet Andersson no primeiro episódio de Sonhos de Mulheres e reencontrá-los, com outro olhar, novas manias, um ritmo de corpo diferente em Sorrisos de uma Noite de Verão, para se dar conta do prodigioso trabalho de modelagem que Bergman é capaz a partir desse “gado” do qual falava Hitchcock.

Bergman contra Visconti

Luchino Visconti, cineasta italiano que era admirado por Godard.

Ou roteiro contra mise en scène. Será que é isso mesmo? Podemos opor um Alex Joffé e um René Clément por exemplo, porque é uma questão de talento.

Mas quando o talento chega tão perto da genialidade obtida em Juventude e Noites Brancas, será que é útil dissertar a perder de vista até saber quem é superior no fim das contas: o autor completo ou o puro encenador? Talvez sim, afinal de contas, é analisar duas concepções de cinema das quais uma talvez seja melhor que a outra.

Existem, grosso modo, dois tipos de cineastas. Aqueles que andam na rua de cabeça baixa e aqueles que andam de cabeça erguida.

Os primeiros, para ver o que se passa ao seu redor, são obrigados a levantar seguida e rapidamente a cabeça, e girá-la às vezes para a esquerda, às vezes para a direita, abarcando com uma série de olhadelas o campo que se abre à sua visão. Eles veem.

Os segundos não veem nada, eles olham, fixando a atenção em um ponto preciso que lhes interessa. Quando rodarem um filme, o enquadramento dos primeiros será aéreo, fluído (Rosselini), o dos segundos, medido em milímetros (Hitchcock).

Encontraremos nos filmes dos primeiros uma decupagem sem dúvida disparatada, mas terrivelmente sensível à tentação do acaso (Welles), e nos filmes dos segundos os movimentos do aparato, não somente de uma precisão incrível sobre o palco, mas que têm seu próprio valor abstrato de movimento no espaço (Lang).

Bergman faria parte do primeiro grupo, o do cinema livre. Visconti, do segundo, o do cinema rigoroso.

De minha parte, prefiro Monika e o Desejo a Sedução da Carne, e a política dos autores à dos encenadores. Que Bergman, com efeito, mais do que qualquer cineasta europeu, exceto Renoir, seja o mais típico representante, a quem ainda duvida, Prisão traz se não a prova, ao menos o símbolo mais evidente.

Conhecemos o assunto: um encenador recebeu como proposta de seu professor de matemática um roteiro sobre o diabo. Portanto, não é a ele que aparecerão as séries de desventuras diabólicas, mas sim a seu roteirista, a quem ele pediu uma continuação.

Enquanto homem do teatro, Bergman admite encenar as peças dos outros.

Mas, enquanto homem do cinema, ele permanece o único mestre a bordo. Ao contrário de um Bresson e de um Visconti, que transfiguram um ponto de partida que lhes é raramente pessoal, Bergman cria ex nihilo (obs: a partir do nada) aventuras e personagens.

O Sétimo Selo é menos habilmente encenado que Noites Brancas, seus enquadramentos são menos precisos, seus ângulos menos rigorosos, ninguém negará: mas, e aí é o ponto capital da distinção, por um homem de um talento tão imenso quanto Visconti, fazer um filme muito bom, no fim das contas, é coisa de muito bom gosto.

Ele tem certeza de não se enganar, e em certa medida, é fácil. 

É fácil escolher as cortinas mais bonitas, os móveis mais perfeitos, fazer somente os movimentos de aparato possíveis, se soubermos antes que temos o talento pra isso. Da parte de um artista, se conhecer bem demais é um pouco ceder à facilidade.

O que é difícil, ao contrário, é avançar em território desconhecido, reconhecer o perigo, correr riscos, ter medo. Sublime é o instante, em Noites Brancas quando a neve cai em grandes flocos ao redor da barca de Maria Schell e Marcello Mastroianni!

Mas o sublime ali não é nada ao lado do velho maestro de Rumo à Alegria que, deitado sobre a grama, olha Stig Olin encarando apaixonadamente Maj-Britt Nilsson na cadeira e pensa: “Como descrever um espetáculo de tanta beleza”! 

Eu admiro Noites Brancas, mas adoro Juventude.

Cahiers du cinema, nº 85, Julho de 1958.

'Le Notti Bianche' (Noites Brancas; 1957), de Luchino Visconti.

Links:

https://revistataturana.wordpress.com/2010/04/24/bergmanorama-por-jean-luc-godard/ 

Cahiers du Cinéma: 

http://www.cahiersducinema.com/article1204.html

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