Godard e a Nouvelle Vague - Uma breve história do revolucionário movimento cinematográfico e do cineasta que tornou-se imortal e, depois, se foi!

Godard e a Nouvelle Vague - Uma breve história do revolucionário movimento cinematográfico e do cineasta que tornou-se imortal e, depois, se foi! - Marcos Doniseti!

Jean-Luc Godard foi um dos grandes nomes da história do Cinema, tornando-se um dos seus principais criadores e reinventores.

Godard - A História Familiar!

Neste dia 03 de Dezembro o cineasta Jean-Luc Godard estaria completando 92 anos. Ele nasceu em Paris, no dia 03 de Dezembro de 1930.

Porém, Godard cresceu e estudou em uma pequena cidade suíça, chamada Nyon, na região do cantão de Vaud, no oeste da Suíça (por isso mesmo que Godard tinha o sotaque típico dessa região). Nyon fica próxima de Genebra e de Lausanne (capital de Vaud).

Sua família era formada por protestantes calvinistas com origem nacional mista, francesa e suíça. Assim, ele alternou a sua vida entre, principalmente, Paris e Genebra (a distância entre as duas cidades é de 540 quilômetros, via rodovia). 

Durante cerca de 30 anos Godard centralizou a sua vida em Paris. Porém, nos últimos anos da década de 1970, por volta de 1977, Godard foi morar, junto com Anne-Marie Miéville, em Rolle, uma pequena cidade próxima às margens do Lago Geneve e que fica perto de Genebra e de Lausanne.

Assim, Godard voltou para as suas origens, ao mesmo tempo em que se mantinha conectado com tudo de importante que acontecia no mundo, especialmente na Europa, cujos acontecimentos foram os temas centrais de muitos dos filmes que realizou a partir dos anos 1980.

E quase todos os seus filmes, dali em diante, passaram a ser realizados nas cidades e regiões próximas de Rolle. Alguns destes filmes foram feitos em sua própria residência ou nos arredores dela, o que foram os casos de 'Soft and Hard' (1985) e de 'JLG/JLG' (1993).

Godard e seus irmãos: Rachel, ao seu lado, era a mais velha. Jean-Luc era o segundo. Claude e Véronique estão sentados. Véronique era a caçula.

Seu pai chamava-se Paul Godard e era médico oftalmologista, sendo dono de uma pequena clínica próxima de Lausanne. A mãe, Odile Monod, que também chegou a estudar medicina, era integrante de uma família abastada, de banqueiros, que eram os Monods, que eram grandes acionistas do banco Paribas. Godard tinha 3 irmãos, que eram Rachel (a primogênita), Claude e Véronique (os dois mais novos que Godard).

Do pai, Godard herdou o espírito pacifista, antiguerra, que está muito presente em seus filmes. E da mãe Godard herdou o espírito de independência, de não se sujeitar à vontade dos outros (os gananciosos produtores de vários filmes de Godard que o digam...). 

Paul e Odile se casaram em 1928 e, em 1930, tiveram os dois primeiros filhos, que foram Rachel (janeiro de 1930) e Jean-Luc (dezembro de 1930). Claude nasceu em 1933 e Véronique em 1937. As duas famílias, os Monods e os Godards, eram de protestantes calvinistas. 

E embora Godard nunca tinha sido de frequentar igrejas ou cerimônias religiosas, vários aspectos do Calvinismo impregnaram em sua obra, incluindo: 

- o trabalho duro e incansável: ele mal terminava um filme e já começava a trabalhar no seguinte;

- a realização de filmes de baixo orçamento, sem qualquer luxo ou ostentação;

- o uso controlado do dinheiro (austeridade);

- a poupança: ele sempre gastava menos do que o orçamento permitia;

- o trabalho realizado como um pequeno mestre artesão, controlando todas as etapas (pré-produção, filmagem e montagem), cujo resultado final são os filmes. 

Alain Sarde, produtor de vários filmes de Godard, e o cineasta assistem partidas de tênis em Roland Garros, em 1990. Godard gostava muito de esportes e passou a jogar tênis depois dos 50 anos. Em vários dos seus filmes temos referências aos esportes: 'Numéro Deux' (1975), 'Sauve qui peut (la vie'; 1980), 'Soigne ta droite' (1987) e JLG/JLG - Autoretrato de Dezembro (1994) são alguns exemplos.

E Godard fazia tudo isso conciliando com a busca permanente da inovação, inclusive estando sempre atualizado tecnologicamente. A pequena produtora que fundou com Anne-Marie Miéville, nos anos 1970 (mudou de nome várias vezes) tinha sempre o que havia de mais moderno e avançado tecnologicamente em termos de equipamentos de filmagem, edição, etc.

Godard teve uma vida bastante privilegiada, o que durou até próximo dos seus 20 anos, quando foi morar em Paris. Estudou, tal como os três irmãos (Rachel, Claude e Véronique), em excelentes escolas suíças. Os pais cobravam que os quatro filhos estudassem e lessem muito. E livros na residência da família não faltavam.

A residência dos Godards e Monods vivia recebendo visitas de escritores, músicos, poetas, intelectuais. Paul Valéry e Rainer Maria Rilke eram frequentadores assíduos da casa e a mãe de Godard, Odile Monod, adorava conversar com todos estes membros da Arte e da intelectualidade. 

Odile era leitora ávida de clássicos da literatura francesa, enquanto que o pai, Paul Godard, preferia os românticos alemães, o que influenciou bastante ao futuro cineasta. Muitas das obras destes autores serão citadas e usadas por Godard em seus filmes.

Assim, Godard e os irmãos cresceram lendo muito, sobre todos os assuntos, incluindo história, filosofia, pintura, teatro, poesia, romances, ouvindo música clássica (Mozart, Beethoven, Bach...). Logo, não é à toa que vejamos todos estes elementos em seus filmes, pois essa foi a formação educacional e cultural de Godard e dos irmãos.

Porém, Godard foi praticamente deserdado pelos avós maternos depois que pegou e vendeu, sem autorização, algumas edições raras e valiosas da vasta biblioteca da família para poder financiar o primeiro filme da 'Gangue Schérer', que foi o 'Le Quadrille' (1950), que foi dirigido por Jacques Rivette e teve Godard como o produtor e ator principal.

A paixão pelo Cinema e a formação da 'Gangue Schérer'! 

Truffaut e Godard: Foto de 1950, quando Truffaut tinha 18 anos e Godard tinha 19 anos.

A paixão de Godard pelo cinema nasceu em Paris, nos últimos anos da década de 1940, quando ele foi estudar, no Lycée Buffon (em 1946) e, depois, na Sorbonne (onde se formou em Etnologia), em 1949. 

Porém, desde 1946, Godard passou a frequentar muito a Cinemateca (que foi fundada em 1936, por Henri Langlois e Georges Franju) e os cineclubes da Cidade Luz com mais vontade do que frequentava o Liceu e, depois, a Universidade. Ele disse, ironicamente, que preferia assistir aos filmes com Juliette Gréco em vez de estudar grego.

Foi nestes templos do Cinema que Godard conheceu e se tornou amigo de Truffaut, Chabrol, Rivette e Rohmer, que também eram cinéfilos apaixonados pela Sétima Arte. Eles sempre se sentavam próximos da tela e, aos poucos, foram estabelecendo uma relação de forte amizade, nascida da paixão pelo Cinema que, para eles, tornou-se o ar que eles respiravam. 

Neste aspecto, eles se diferenciavam de outros que se envolviam com o Cinema, para os quais este não a única atividade e, também, nem a principal. O cinema, para os membros da 'Gangue Schérer', era a sua própria razão de viver. Não foi à toa que eles filmaram durante todas as suas vidas, enquanto a saúde permitiu.

Havia outros membros que sempre apareciam nas sessões, como eram os casos de André Bazin, de Jacques Doniol-Valcroze, que foram 2 dos 3 fundadores da 'Cahiers du Cinéma'... o terceiro foi Joseph-Marie Lo Duca, e de Alexandre Astruc.

Mas o núcleo do grupo que, depois, irá criar a 'Nouvelle Vague', eram os cinco jovens, que assistiam aos filmes e, depois, passavam as madrugadas andando por Paris debatendo sobre eles. Era a 'Gangue Schérer', que foi a maneira como André Bazin passou a denominar o grupo. Schérer era o nome verdadeiro de Rohmer, que era o líder e mentor dos jovens, sendo dez anos mais velho do que Godard.

Jacques Rivette, em 1950, quando tinha 22 anos.

Rohmer era professor de literatura e apaixonado por cinema, que o levou a comandar um cineclube (o Ciné-Club do Quartier Latin ou CCQL), que havia sido fundado por um aluno seu, chamado Frédéric Froeschel. Depois, o grupo criou um boletim interno (o 'Le Bulletin du CCQL') no qual publicaram as primeiras críticas e resenhas sobre os filmes que assistiam e sobre o qual debatiam intensamente.

Na sequência, eles criaram um jornal próprio do CCQL, que foi o 'Gazette du Cinéma', que teve cinco edições e foi publicado entre Maio e Novembro de 1950.

Éric Rohmer havia escrito e publicado dois ensaios sobre Cinema, em 1948 e 1949, e que foram lidos por Godard, que daí passou a frequentar o CCQL e a Cinemateca, onde também conheceu e ficou amigo de Truffaut, um jovem cinéfilo, que também passou a frequentar o cineclube a partir de 1949, além de participar ativamente dos debates realizados no local. 

Jacques Rivette chegou a Paris no final de 1949, vindo da sua pequena cidade natal de Rouen, na região da Normandia (norte da França), onde frequentava um cineclube e já havia dirigido um curta metragem ('Aux quatre coins'; 1949). Ele também havia lido os ensaios de Rohmer e passou a frequentar o CCQL.

Depois de vários meses frequentando a Cinemateca, sentando lado a lado, um dia Godard virou para o lado e disse, para Rivette, 'Parece que estou reconhecendo você'. Os membros do grupo costumava assistir a 3 ou 4 filmes por dia e, muitas vezes, eles ficavam o dia inteiro em um único cinema.

Posteriormente, a partir de 1951, os cinco jovens cinéfilos passaram a colaborar com aquela que se tornou a mais importante e influente publicação de cinema do mundo, que foi a 'Cahiers du Cinéma'. A primeira edição da publicação veio à luz em Abril de 1951.

Nesta época, Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette e Rohmer ficaram conhecidos como os 'Jovens Turcos' da 'Cahiers'. Eles também começaram a ficar conhecidos pelas polêmicas que travaram nas páginas da publicação.

Nas páginas da 'Cahiers' eles travaram, durante toda a década de 1950, inúmeras batalhas culturais, defendendo o conceito de Cinema Autoral, que havia sido defendido originalmente por Alexandre Astruc, em Março de 1948, na revista "L'Écran Français". 

Edição número 01 da 'Cahiers du Cinéma', de Abril de 1951.

Eles também afirmavam ainda que os grandes cineastas de Hollywood (Hitchcock, Hawks, Fuller, Nicholas Ray...) eram os verdadeiros autores de suas obras, sendo autênticos artistas, o que era considerado um absurdo pelos críticas e pela intelectualidade da época, que consideravam que estes cineastas hollywoodianos eram diretores medíocres e que faziam filmes caça-níqueis, desprovidos de qualquer valor artístico.

O grupo de jovens críticos da 'Cahiers' também afirmava que o Cinema era a mais importante forma de Arte, superando todas as outras Belas Artes (Literatura, Teatro, Música, Pintura, Arquitetura e Escultura), o que era uma verdadeira blasfêmia naquela época, quando predominava a ideia contrária, ou seja, a de que o Cinema era uma forma de Arte inferior às demais.

Éric Rohmer, que era professor de Literatura em um Liceu e que já havia publicado um romance pela editora Gallimard, e cujo nome verdadeiro era Jean-Marie Maurice Schérer, disse que adotou esse pseudônimo porque o cinema era mal visto por todos, inclusive pela mãe dele. Assim, ele passou a usar o novo nome para esconder o seu envolvimento com o Cinema, ao qual ele tanto amava. 

Neste sentido, a ideia de uma Nouvelle Vague não envolve apenas um projeto estético, de renovação da linguagem cinematográfica. Isso faz parte dela, sim, mas aqui trata-se de um MOVIMENTO cinematográfico, que foi criado por um grupo de jovens cinéfilos que se formou nas sessões da Cinemateca e dos cineclubes parisienses. 

Eles ficaram amigos em função da sua paixão comum pelo Cinema, passaram a escrever e debater sobre cinema, que considerava como sendo a forma de Arte mais importante. Inicialmente, eles fizeram isso no boletim e, depois, no jornal do CCQL (o 'Gazette du Cinéma'). 

Capa da edição número 05 da 'Gazette du Cinéma', que foi a última e que foi publicada em Novembro de 1950.

Mais tarde, eles passaram a escrever e a polemizar na 'Cahiers du Cinéma' e na 'Arts', defendendo a ideia de um Cinema Autoral, que iria enterrar o velho cinema, comercial, conservador e padronizado do cinema de 'Tradição de Qualidade' que dominava totalmente a indústria cinematográfica francesa. 

Portanto, a Nouvelle Vague foi um movimento, criado por um grupo de amigos cinéfilos, que se propôs a promover uma verdadeira revolução em toda a indústria cinematográfica francesa que, na época, era controlada pelos roteiristas, e que não tinham, como disse Truffaut, nenhum interesse pela linguagem do cinema propriamente dito. 

Com isso, seria possível criar um cinema moderno, ousado, inovador, feito por artistas, que seriam os cineastas, que se tornariam os autores das suas obras, colocando um fim no domínio dos roteiristas.

É justamente em função de tudo isso que a Nouvelle Vague somente pode ser compreendida na condição de ser um movimento cinematográfico, de caráter revolucionário. A realização dos filmes foi a consequência de todo esse processo histórico e que começou com a formação da 'Gangue Schérer'. 

Sem a formação da 'Gangue Schérer', nos anos finais da década de 1940, o fato concreto e inegável é que a Nouvelle Vague simplesmente não existiria.

Os primeiros filmes (curtas)! 

'Le Quadrille' (Rivette; 1950 foi o primeiro filme realizado pelos membros da 'Gangue Schérer'. Os curtas e médias metragens que eles realizaram entre 1950 e 1958 foram fundamentais em seu processo de aprendizado e anteciparam vários aspectos dos longas que iriam realizar durante as suas carreiras.

Durante a década de 1950 os 'Jovens Turcos' também começaram a fazer os seus primeiros filmes, que eram curtas e médias metragens, pois eles não tinham recursos financeiros para produzir longas.

Assim, o primeiro filme foi 'Le Quadrille', de 1950, que foi financiado com a venda, não autorizada, por Godard, de edições raras da vasta biblioteca dos seus avós maternos, o que deixou seus avós enfurecidos. Rivette dirigiu o filme, enquanto que Godard foi o produtor e o ator principal. Afinal, foi ele que conseguiu o dinheiro para a sua realização, não é mesmo?

Assim, mesmo com poucos recursos e em condições precárias, eles realizarem inúmeros curtas metragens, que foram muito importantes, pois eles permitiram que estes jovens cinéfilos aprendessem a fazer filmes na prática (nenhum dos cinco frequentou faculdade de cinema). Esses filmes também foram importantes porque eles anteciparam características e elementos que estarão presentes em suas obras futuras. 

Em 'Charlotte et son Jules' (Godard; 1958), por exemplo, nós vemos o personagem de Belmondo sendo passado para trás por uma jovem pela qual ele era apaixonado, o que também irá acontecer em 'A Bout de Souffle' (1959), quando a Patricia faz o mesmo. 

Em outros filmes de Godard também veremos personagens masculinos sendo passados para trás por jovens e belas mulheres, tal como ocorre em 'Bande a part' (1964), 'Pierrot le fou' (1965), 'Masculino Feminino' (1966) e em 'Prénom Carmen' (1983). 

As dificuldades de comunicação e entendimento entre homens e mulheres e a impossibilidade de amar são dois temas que sempre estiveram presentes na obra de Godard.

Os primeiros longas metragens e o sucesso!

André Bazin na redação da 'Cahiers du Cinéma' em cena do filme 'La Sonate à Kreutzer' (1956), dirigido por Éric Rohmer. Rivette foi o único dos membros dos 'Jovens Turcos' da publicação que não apareceu no filme.

Somente a partir de 1957 é que Rivette, Chabrol, Truffaut, Rohmer e Godard finalmente começarão a dirigir os seus primeiros longas metragens. 

Os dois primeiros foram os de Chabrol ('Nas Garras do Vício' e 'Os Primos', ambos filmados em 1958 e que foram lançados comercialmente no início de 1959). Também tivemos, em 1959, o lançamento de 'Les 400 Coups' ('Os Incompreendidos', 1959), de Truffaut. 

Esse pioneirismo de Chabrol e Truffaut é explicado por razões familiares. Chabrol conseguiu o dinheiro para os filmes com a esposa, que pegou a parte da herança da família a que tinha direito e o emprestou para o marido. Depois, com o sucesso dos filmes, ele recuperou o investimento feito. Truffaut, por sua vez, teve o seu primeiro longa financiado pelo sogro, que era um importante distribuidor cinematográfico francês. 

Os três filmes foram lançados nos primeiros meses de 1959 e os dois últimos fizeram muito sucesso, comercial e de crítica. O auge ocorreu quando Truffaut conquistou o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, em maio de 1959, o que fez o filme se tornar um imenso sucesso, enquanto que o cineasta se tornou uma celebridade na França. 

O filme de Truffaut também abriu as portas do mercado internacional para os filmes da Nouvelle Vague e, até mesmo, para jovens cineastas franceses que não tinham qualquer conexão com o movimento dos Jovens Turcos, mas os seus filmes foram vendidos no mercado internacional como se fizessem parte do movimento.

Bernadette Lafont e Gérard Blain em cena do curta 'Les Mistons' ('Os Pivetes'; 1957), dirigido por Truffaut. Esse ótimo curta antecipou várias das principais características dos longas que Truffaut irá dirigir durante a sua carreira.

Godard foi o último dos cinco 'Jovens Turcos' a dirigir um longa metragem, que foi 'A Bout de Souffle', que foi filmado entre 17 de agosto e 19 de setembro de 1959. O filme demorou para ser finalizado (pois precisou ser dublado e mixado) e foi lançado, em Paris, quase seis meses depois, em 16 de Março de 1960.

Estes filmes chocaram muitos conservadores franceses, pois mostravam uma realidade da França contemporânea, colocando em evidência vários aspectos da sociedade francesa (os menores infratores e outros criminosos, por exemplo) que eram ignorados pelo cinema do país até aquele momento.

Mas, enquanto isso, eles foram exaltados pelos defensores da necessidade de se renovar o cinema francês (caso de Jean Cocteau, por exemplo), que era visto como obsoleto e esclerosado no aspecto criativo, embora fizesse muito sucesso comercial e conquistasse prêmios nos principais festivais europeus (Cannes, Veneza e Berlim).

Esse fenômeno foi denominado de 'Nouvelle Vague', pela revista semanal de informações "L'Express", e deu origem a uma profunda renovação do cinema francês que, até aquele momento, estava afundando sob o domínio de falsas lendas, como escreveu Truffaut, nas páginas da 'Arts', em 1958. 

A crise da Nouvelle Vague, o fim do Movimento e o início da ruptura entre Godard e Truffaut!

Jean Seberg e Jean-Paul Belmondo em cena clássica de 'A Bout de Souffle' (1959), nas Champs-Elysées. Foto de Raymond Cauchetier.

Porém, durante quase dois anos (1960 pós-'Acossado' e em 1961), os filmes do movimento começaram a fracassar comercialmente e a serem duramente atacados pela crítica francesa, com quem eles haviam rivalizado durante toda a década de 1950.

Entre estes filmes nós tivemos 'O Signo do Leão' (Éric Rohmer; 1961), 'Paris nos Pertence' (Jacques Rivette; 1961), 'Atirem no Pianista' (F. Truffaut; 1961), 'Une Femme est Une Femme' (JL Godard; 1961).

O lançamento comercial de 'Acossado' ocorreu em 16 de Março de 1960, em Paris, e que foi, de longe, o filme de maior sucesso da Nouvelle Vague e da própria carreira de Godard que, graças ao filme, ganhou o Urso de Prata de Melhor Diretor no Festival de Berlim de 1960. Mas, depois os filmes lançados pelos cineastas do movimento, em 1960 e 1961, acabaram fracassando.

É como se 'Acossado' representasse o auge e, depois disso, acontecesse uma inevitável decadência da Nouvelle Vague, levando ao seu precoce fim.

Nestas circunstâncias, os jovens cineastas da Nouvelle Vague também passaram a ser bastante atacados por aqueles críticos com quem os 'Jovens Turcos' haviam duelado durante a década de 1950, principalmente pelos da revista 'Positif', seus grandes rivais. E os cineastas e roteiristas da 'Tradição de Qualidade' fizeram o mesmo, vingando-se dos seus antigos detratores.

Essa crise comercial gerou um profundo debate entre os membros do núcleo do movimento, os cinco 'Jovens Turcos', bem como entre os colaboradores da 'Cahiers du Cinéma'. 

Godard e Truffaut foram amigos durante muitos anos, mas tomaram rumos diferentes e acabaram rompendo. A ruptura entre eles, que começou em 1961 e se concluiu em 1968, representou o fim da Nouvelle Vague enquanto movimento cinematográfico.

Aliás, a 'Cahiers' também sofrerá as consequências dessa crise, pois o editor chefe da publicação, que era o Éric Rohmer, foi afastado do cargo depois que recusou-se a colocar a 'Cahiers' a serviço da Nouvelle Vague, como era o desejo de Godard, Truffaut, Rivette e Chabrol, bem como de 80% dos colaboradores da 'Cahiers'. 

Após Rohmer ser afastado, foi Jacques Rivette quem assumiu o comando da revista, na condição de editor chefe, que passou a defender totalmente ao movimento.

É bom ressaltar que Éric Rohmer era muito admirado e respeitado por todos (era chamado de 'Grande Momo' por eles), mas a sua postura intransigente o levou a ser afastado do comando da publicação, embora continuasse fazendo parte da equipe de colaboradores da 'Cahiers'.

Além disso, os próprios cineastas do movimento participaram de um intenso debate sobre qual o rumo que a Nouvelle Vague deveria seguir daí em diante. E foi neste momento que surgiram as discordâncias, desenvolvendo-se duas posições bem diferentes, que foram as de Truffaut e Godard.

'Jules e Jim' (1962), de Truffaut, com Jeanne Moreau, Henri Serre e Oskar Werner.

Truffaut vai defender que os cineastas do movimento se tornassem mais conservadores, fazendo filmes mais convencionais, para não afastar o público. Ele citava Hitchcock como o modelo a ser seguido, pois o velho mestre conseguia conciliar inovação, sucesso comercial e de crítica. 

Truffaut, que na época em que atuava como crítico da 'Cahiers' era o mais radical e agressivo contra o cinema comercial e convencional, fazendo até ataques pessoais aos cineastas e roteiristas do cinema de 'Tradição de Qualidade' francês, seguirá por esse caminho, mais conservador e convencional, durante toda a sua trajetória, até o fim da sua vida, em 1984. 

Como afirmou um personagem do seu filme 'Um Só Pecado' (1964): 'Eu amo a arte, mas não tenho ódio do dinheiro'. 

Durante 7 anos, entre 1961 e 1966, Truffaut também fez poucos longas, apenas quatro, que foram: 'Atirem no Pianista' (1961), 'Jules et Jim' (1962), 'La Peau Douce' (1964) e 'Fahrenheit 451' (1966). A sua prioridade, neste período, foi o livro de entrevistas que fez com Hitchcock. A própria postura dele, neste momento, mostrava que fazer filmes havia ficado em segundo plano, pelo menos naqueles anos. 

Truffaut e Hitchcock em uma das entrevistas que foram realizadas e que, depois, foram reunidas em um livro antológico.

Enquanto isso, Godard irá se concentrar totalmente na realização de seus filmes, bem como irá defender uma postura radicalmente oposta para a superação da crise que a Nouvelle Vague enfrentava, dizendo que eles deveriam continuar apostando na criação de um cinema moderno, ousado e inovador, pois o público acabaria se acostumando com o mesmo. 

Assim, segundo Godard, a Nouvelle Vague acabaria criando o seu próprio público, garantindo a sobrevivência do movimento.

E o próprio Godard também seguiu por esse caminho, sendo que ele jamais se conformou em criar um cinema convencional, como fez o seu velho amigo Truffaut. A quebra das regras cinematográficas e a busca permanente da inovação caracterizaram a sua obra até o fim de sua vida.

Desta maneira, independente de se gostar mais dos filmes de Godard ou de Truffaut, o fato concreto é que eles mantiveram, enquanto viveram, a mesma postura que adotaram naquele crítico ano de 1961, quando a Nouvelle Vague entrou em crise e chegou próxima do fim. 

Mas, se eles continuaram fazendo muitos filmes, o fato concreto é que a unidade do movimento chegou ao fim. Desta maneira, a postura típica de Mosqueteiros que haviam adotado até aquela época (a do famoso 'Um por todos e todos por um') não mais se repetiria. 

Para todos os efeitos, na condição de movimento, a Nouvelle Vague terminou em 1961, embora tenha continua a existir no plano estético. 

Godard - Carregando a Nouvelle Vague nas costas! 

Cena de 'Vivre sa vie' (1962), que é um dos melhores e mais influentes filmes de Godard. Entre seus maiores admiradores nós temos Fassbinder (que assistiu ao filme por 27 vezes) e Wim Wenders.

Com essas mudanças nos rumos do movimento, Godard se tornou o mais produtivo, criativo e radicalmente inovador cineasta da Nouvelle Vague, lançando várias obras-primas em poucos anos. A sua criatividade e produtividade entre 1959 e 1967 é espantosa, tendo dirigido 15 longas, três vezes mais do que Truffaut, que lançou apenas 5 longas no mesmo período. 

E os filmes que Godard, neste período, lançou espantam pela qualidade e diversidade de estilos, gêneros, proposta estética e inovação. Ele nunca se repetia.

Assim, Godard fez um pouco de tudo: 

- Filme Policial ('Acossado'; 1959);

- Thriller de Espionagem ('Le Petit Soldat; 1960');

- Comédia Musical ('Une Femme est Une Femme'; 1961);

- Guerra ('Les Carabiniers'; 1963);

- Romance Metalinguístico ('Le Mépris'. 1963);

- Ficção Científica ('Alphaville'; 1965);

- Aventura Libertária ('Pierrot le fou'; 1965);

- Filme Ensaio '('2 ou 3 Coisas Que Eu Sei Sobre Ela'; 1966);

- Filme Político ('A Chinesa'; 1967);

- Filme Surrealista ('Weekend', 1967).

Cena de 'Weekend' (1967), que o último filma da fase Nouvelle Vague de Godard. Quando terminaram as filmagens a ideia de Godard era de nunca mais voltar a fazer um filme, mas depois ele mudou de ideia e continuou dirigindo muitos filmes em sequência.

Em todos os seus filmes, Godard sempre procurava quebrar com as regras e com as convenções de cada gênero cinematográfico, criando novas formas de se fazer cinema. Suas inovações eram imensas e radicais, promovendo uma verdadeira reinvenção do Cinema, que tinha enfrentando uma grave crise criativa, no mundo inteiro, nos anos finais da década de 1950.

Tudo isso o tornou, inegavelmente, o cineasta mais influente do mundo na década de 1960, o que atraiu a fúria e a inveja de críticos e até de outros cineastas reconhecidos (não é verdade, Mr. Bergman?). Afinal, a inveja é o mais subestimado dos sentimentos humanos, pois o sucesso de alguns sempre atrai a fúria e a raiva de muitos. 

Mas a força criativa e a riqueza da obra de Godard era inegável e o mesmo tratou de ignorar os críticos e invejosos. Um exemplo disso é que, em 1966, um jovem estudante universitário dos EUA disse, em uma entrevista, que ficaria imensamente feliz se ele se tornasse 'o Godard dos EUA". O nome dele? Brian De Palma.

O jovem William Friedkin (que depois dirigiu 'Operação França', 'O Exorcista' e 'O Comboio do Medo', por sua vez, quando foi fazer o seu primeiro filme, tentou usar os mesmos métodos de filmagem que Godard usara em 'Acossado'. Não deu certo, mas a influência do mestre francês era nítida.

A genial e inovadora obra que Godard criou período, de 1959 a 1967, e as mudanças de postura e de rumo dos demais membros do movimento, fizeram com que ele carregasse a Nouvelle Vague nas costas durante estes anos.

Chabrol, Rivette e Rohmer! 

Cena de 'Les Cousins' (Os Primos; 1958), de Chabrol, com a participação de Juliette Mayniel, Jean-Claude Brialy e Gérard Blain. Este foi o primeiro longa metragem de um cineasta do grupo dos 'Jovens Turcos' que alcançou grande sucesso comercial e de crítica. E o filme ainda revelou alguns ótimos nomes da nova geração de atores e atrizes.

Claude Chabrol, que foi o primeiro cineasta do movimento a dirigir um longa metragem (e também foi o único que nunca dirigiu um curta metragem), depois do sucesso de 'Nas Garras do Vício' e de 'Os Primos', se perdeu em filmes fracos e abertamente comerciais entre 1963 e 1967 (com a honrosa exceção de 'A Linha de Demarcação'). Ele recuperou a boa forma a partir de 1968 e, nos anos seguintes, lançou uma sucessão de ótimos filmes.

Obs: Escrevi e publiquei um texto sobre esses filmes de Chabrol (ver link após o final do texto).

Quanto a Rivette e Rohmer, o fracasso dos seus primeiros longas metragens ('O Signo do Leão', de Rohmer, feito em 1959 e lançado em 1961, e 'Paris nos Pertence', de Rivette, que começou a ser filmado em 1957 e foi lançado em 1961), os levou a parar e refletir sobre a obra que iriam criar e as suas carreiras somente deslancharam a partir do final da década de 1960. 

Jacques Rivette ficou 5 anos sem filmar depois do fracasso de 'Paris nos Pertence' e somente voltou a dirigir com 'A Religiosa', de 1966, no qual Anna Karina interpretou a protagonista. O filme chegou a ser censurado, mas depois de muita pressão da imprensa e da opinião pública, ele acabou liberado. O caso ajudou na sua divulgação. Porém, Rivette teria que esperar pelo sucesso de 'Céline e Julie Vão de Barco', de 1974, para alcançar o reconhecimento internacional. 

Éric Rohmer, por sua vez, fez um curta e um média metragem ('A Padeira do Bairro' e 'A Carreira de Suzane') e depois foi trabalhar para a Televisão. Ele somente voltou com força ao cinema com o filme 'A Colecionadora', de 1967. Sua carreira internacional deslanchou apenas em 1969, com o belo 'Minha Noite com Ela'.

O fim do movimento! 

Godard, Éric Rohmer, Chabrol, Rivette e Truffaut.

É claro que todos eles continuaram renovando o cinema no aspecto estético (Truffaut e Chabrol nem tanto), criando filmes inovadores (Godard, em especial), mas eles não atuavam mais de forma unida e coesa, no espírito dos mosqueteiros de Alexandre Dumas, como acontecia até aquele momento (1961).

Com isso, na prática, para todos os efeitos, a Nouvelle Vague, quando analisada na condição de um movimento formado por cinéfilos unidos em torno dos mesmos ideais e dos mesmos objetivos, chegou ao fim em 1961. 

Afinal, eles se dividiram e nunca mais voltaram a defender um mesmo projeto cinematográfico. E naqueles anos iniciais da década de 1960, até 1967, pelo menos, foi Godard o grande responsável por carregar o movimento nas costas, como já afirmei.

E a divisão principal irá se desenvolver entre Godard e Truffaut que, a partir daquele momento, começarão a trocar várias farpas, embora continuassem sendo amigos e se respeitando. Porém, já estavam lançadas as sementes da futura ruptura entre os dois maiores nomes da Nouvelle Vague. 

Jacqueline Bisset e Jean-Pierre Léaud em cena de 'A Noite Americana' (1973), filme de Truffaut que foi duramente criticado por Godard, o que gerou a ruptura total entre os dois cineastas.

Essa ruptura, que ocorreu no plano cinematográfico em 1961, também irá acontecer no aspecto político e ideológico durante o Maio de 1968 e, finalmente, irá se completar no plano pessoal em 1973, quando Truffaut lançou o 'A Noite Americana', pelo qual conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. 

Na visão de Godard, essa 'conquista' de Truffaut, e o caráter não realista de 'A Noite Americana' que, em sua visão, idealizava a maneira de se fazer um filme, era a comprovação de que o seu antigo amigo de Cinemateca de Paris e de Cahiers du Cinéma tinha traído ao movimento e abandonado a ideia de cinema defendida por eles na época em eram os 'Jovens Turcos'.

E isso aconteceu mesmo com o Truffaut sendo o mais radical e agressivo, nos anos 'Cahiers', contra o cinema francês tradicional. Então, Godard concluiu que Truffaut havia se rendido para o cinema comercial e conservador, muito parecido com o da 'Tradição de Qualidade' francês, contra o qual os 'Jovens Turcos' da 'Cahiers' haviam se rebelado durante a década de 1950. 

Quanto a Godard, ele foi se radicalizando cada vez mais no plano pessoal, cinematográfico, político e ideológico, tornando-se um maoísta e adotando uma postura cada vez mais sectária, que o levará até mesmo a se afastar dos seus velhos amigos cinéfilos e cineastas. 

Godard e os The Rolling Stones, em Maio de 1968, em um intervalo das sessões de gravação de 'One Plus One'/'Sympathy for the Devil'. O filme tem duas versões, a de Godard ('One Plus One') e a dos produtores ('Sympathy for the Devil'), mais comercial.

No plano cinematográfico, Godard coloca um fim em sua fase Nouvelle Vague com a obra-prima 'Weekend' (1967), muito influenciado pelo Surrealismo e pela obra de Buñuel, a quem homenageia no filme. Quando terminou a filmagem, ele avisou à equipe, que trabalhava com ele há vários anos, que estavam todos liberados para trabalhar com outros cineastas, pois ele não tinha mais a intenção de filmar.

Foi por isso que Godard colocou intertítulos no final de 'Weekend' que diziam 'Fim da História' e 'Fim do Cinema'. Ele estava avisando que estava encerrando a sua carreira como cineasta e chegou a avisar aos amigos sobre a sua decisão. Ele chegou a dizer que 'o cinema estava morto e acabado'.

Essa decisão de Godard deixou vários dos seus principais amigos preocupados. Phillipe Garrel e Bertolucci, por exemplo, que eram dois cineastas da nova geração que foram muito influenciados por Godard, disseram que ele não poderia parar de fazer filmes, pois é quem iluminava a carreira dos outros cineastas, mostrando o caminho que eles deveriam seguir. 

Estas afirmações de Garrel e Bertolucci comprovam o quanto Godard era influente naquela época. Não havia cineasta que se comparasse a Godard, neste aspecto, talvez com a única exceção de Michelangelo Antonioni. Aliás, Godard e Antonioni eram grandes amigos e se respeitavam muito.

Godard, o Maoísmo e o Grupo Dziga Vertov (1968 a 1972)! 

Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin durante a fase maoísta, quando criaram o Grupo Dziga Vertov e fizeram seis filmes juntos (um deles, o 'Até a Vitória', ficou inacabado).

Apesar da promessa de não filmar nunca mais, depois Godard irá mudar de ideia e, entre 1968 e 1972, ele irá dirigir 12 filmes, sendo que alguns ele fez sozinho, enquanto que outros ele fez com outros colaboradores (Jean-Pierre Gorin e Jean-Henri Roger, em especial). 

Um destes doze filmes, que foi filmado em 1970, sobre as lutas dos Palestinos ('Até a Vitória'), ficou inacabado, embora tenham filmado muito material (mais de 10 horas).

O projeto do Grupo Dziga Vertov (1968-1972), criado junto com Gorin, em 1968, acabará fracassando, pois a imensa fragmentação política e ideológica do grupo (que contava com a presença de maoístas, trotskistas, leninistas, anarquistas, stalinistas...) irá provocar conflitos imensos.

Além disso, eles não conseguiram atingir o público ao qual esses filmes se destinavam (jovens e operários revolucionários), embora tivessem feito muitos esforços nesse sentido.

Assim, na prática, para todos os efeitos, o que irá acontecer é que, a partir do filme 'Vento do Leste', realizado em 1970, o GDV será controlado por Godard e Gorin. 

Caixa de DVD com vários dos filmes que Godard e Gorin fizeram, juntos, durante a existência do Grupo Dziga Vertov (1968-1972).

Serão os dois, juntos, que irão dirigir os seguintes filmes: 

1- Vento do Leste (1970); 2- As Lutas Ideológicas na Itália (1970); 3- Até a Vitória (1970; ficou inacabado); 4- Vladimir e Rosa (1970); 5- Tudo Vai Bem (1972); 6- Letter to Jane (1972).

Godard fez outros filmes neste período, mas nos quais a participação de Gorin inexistiu ou foi muito reduzida, como foram os casos de 'One Plus One' (1968), 'Um Filme como os Outros' (1968), 'A Gaia Ciência' (1968), 'Pravda' (1969), 'British Sounds' (1969) e 'One P.M.' (1968-1971).  

E no final de 1972 chegou ao fim a colaboração entre Godard e Gorin, o que resultou, é claro, no fim do Grupo Dziga Vertov. Na época a ruptura não foi nada amigável, mas eles voltariam a se encontrar, de forma amigável, em 2004.

Godard nos anos 1970 - A vida pessoal e a retomada da sua carreira!

Godard e Anne-Marie Miéville viveram e trabalharam juntos por, praticamente, 50 anos. Anne-Marie foi fundamental para ajudar Godard a retomar a sua carreira de cineasta.

Depois de dois relacionamentos complicados com Anna Karina e Anne Wiazemsky, que duraram cerca de 4 anos cada um, Godard conheceu Anne-Marie Miéville, cineasta de vanguarda e intelectual brilhante e articulada. Eles viveram 50 anos juntos, entre 1972 e 2022, até o falecimento do cineasta, em 13 de setembro deste ano.

Anne-Marie foi fundamental para que Godard recuperasse a sua vontade de filmar depois do fracasso do Grupo Dziga Vertov (1968-1972), bem como o ajudou a se recuperar de sérios problemas de saúde que foram provocados por um  grave acidente de motocicleta que ele sofreu em Paris, em 1971.

Por isso mesmo é que Godard ficou praticamente sem filmar em dois anos (1971 e 1973), o que era totalmente incomum para ele, que estava acostumado a começar a fazer um novo filme tão logo terminasse o anterior.

Desta maneira, durante as décadas de 1970, 1980, 1990 e nos anos 2000, com a decisiva participação de Anne-Marie Miéville, Godard voltou a ser um cineasta bastante prolífico, dirigindo cerca de 30 longas metragens, mais até do que no período 1959-1972. Ele também dirigiu, junto com Anne-Marie, duas séries para TV (em 1975 e em 1977).

'Numéro Deux' (1975) foi o primeiro longa de Godard depois do fim do Grupo Dziga Vertov. O roteiro foi escrito por Godard e Anne-Marie.

Neste período, Godard também dirigiu inúmeros curtas metragens, vídeos para festivais de cinema e segmentos para projetos coletivos. Godard chegou, até mesmo, a criar roteiros em formato de vídeo para os seus filmes, como fez para 'Salve-se quem Puder (a vida)', de 1980, 'Passion' (1982) e para 'Je Vous Salue, Marie' (1985), por exemplo.

E muitas destas obras foram realizadas em regime de co-autoria com Anne-Marie Miéville, que alternava a condição de diretora ou roteirista.

Entre os seus principais longas metragens deste longo período (1976 a 2018) estão: 'Salve-se quem puder (a vida), de 1980, 'Paixão' (1982), 'Prénom Carmen' (1983), 'Je Vous Salue, Marie' (1985), 'Détective' (1985), 'Atenção à Direita' (1987), 'Nouvelle Vague' (1990), 'Hélas Pour Moi' (1993), 'For Ever Mozart' (1996), "Éloge de l'amour" (2001), 'Notre Musique' (2004), 'Filme Socialismo' (2010), 'Adeus a Linguagem' (2014) e "Le Livre D'Image" (2018).

Em muitos destes filmes, Godard irá se utilizar da técnica da colagem, que foi criada pelos cubistas (Picasso, Braque, Matisse), inserindo nos filmes todas as outras formas de Arte: Música, Poesia, Literatura, Pintura, Cultura Pop, bem como a Ciência, a Filosofia, Religião e a História.

Estes filmes também são bastante experimentais e inovadores em relação ao tratamento que era dado às imagens, sons, trilha sonora e diálogos. 

A belíssima Maruschka Detmers é a protagonista de 'Prénom Carmen' (1983), é um filme policial no qual Godard faz referências a vários dos seus filmes dos anos 1960, como 'Band a Part' e 'Le Petit Soldat'. 'Prénom Carmen' ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1983, sendo o seu filme mais acessível deste período (1980 em diante).

Godard também chegou a usar das novas tecnologias digitais ('Filme Socialismo'; 2010) e de 3D ('Adeus a Linguagem'; 2014), tornando-se um dos pioneiros no uso delas, tal como já havia feito, nos primeiros anos da década de 1970, em suas pesquisas com Vídeo. 

Alguns filmes de Godard, neste longo período, são mais simples, casos de 'Prénom Carmen' (1983) e 'For Ever Mozart' (1996), enquanto que outros possuem uma estrutura mais complexa, com muitos elementos dispersos pelos filmes e que exigem do público uma postura muito diferente daquela que o mesmo adota quando assiste aos filmes, mais convencionais, de outros cineastas.

Os filmes de Godard, inegavelmente, exigem que os espectadores assistam aos mesmos várias vezes, que pesquisem sobre os temas presentes nos filmes, bem como sobre as citações e referências (cinematográficas, literárias, pictóricas, filosóficas, poéticas, musicais, históricas...) que estão presentes em grande número nestes filmes e que são fundamentais para a sua compreensão. 

E todos os elementos presentes nestes filmes, que lhes dão uma aparência de caos e desordem, estão claramente conectados, de alguma forma, constituindo um todo lógico e coerente, mas que precisa ser decifrado e compreendido por quem assiste aos mesmos. 

Cena de 'Détective' (1985), com duas estrelas do Cinema (Claude Brasseur e Nathalie Baye) e uma do Pop francês (Johnny Hallyday, com o taco na mão), que talvez seja um dos filmes mais complexos do Período Tardio (1980 em diante).

Assim, a compreensão de muitos dos seus filmes tornou-se mais difícil, embora não seja verdade que eles sejam 'herméticos, incompreensíveis ou impenetráveis'. Porém, isso fez com que o público e, até mesmo, boa parte da crítica, acabasse se afastando dos filmes de Godard, fato este que ele mesmo reconheceu. 

Merece muito destaque, também, a monumental obra de Godard que são os oito episódios da "Histoire (s) du Cinéma", que foi feita para a TV. Na (s) "Histoire (s)', Godard faz uma refinada análise da história do cinema durante o século XX (a série começou a ser feita em 1988 e foi concluída em 1998).

Na série, Godard conecta a história do Cinema com os principais acontecimentos do século XX (as duas Guerras Mundiais, a Guerra Fria, etc), bem como acaba inserindo a sua própria história e a de outros cineastas relevantes (Hitchcock, Truffaut, os Neorrealistas Italianos...) em todo este processo, mostrando de que maneira o Cinema foi afetado por estes grandes acontecimentos. 

No século XXI, Godard priorizou a realização de Filmes Ensaio, que trataram, principalmente, de acontecimentos da história recente da Europa, como as Guerras da Iugoslávia (Bósnia, Kosovo), o crescimento das desigualdades sociais, da Extrema Direita e da islamofobia na Europa. 

"Le Livre D'Image" (2018) foi o último longa metragem de Godard. É um filme ensaio no qual o cineasta se utilizou da técnica de colagem e reuniu inúmeros vídeos, músicas, textos, imagens de filmes. Godard faz reflexões sobre o estado atual do mundo, apontando alguns dos seus principais problemas e deixando uma mensagem de esperança ao final. Foi uma bela despedida do mestre, que recebeu uma Palma de Ouro Especial, no Festival de Cannes de 2018, pelo filme.

Seus filmes recentes procuraram buscar na história da Arte, da Civilização, dos conflitos políticos e ideológicos e do longo histórico de Guerras e Revoluções na Europa as explicações para a crise que o Velho Mundo mergulhou nas últimas décadas. 

Em 'Filme Socialismo' (2010), filme no qual usou a tecnologia digital, uma personagem diz que não queria envelhecer e morrer sem que visse a Europa feliz novamente. Em 'Adeus a Linguagem' (2014), quando usou o 3D de forma inovadora, uma personagem diz que os russos nunca poderão se tornar totalmente europeus, pois isso faria com que eles deixassem de ser russos. 

A recente guerra na Ucrânia deu razão, mais uma vez, ao mestre Godard que, aliás, condenou a invasão do país pelos russos, embora não tivesse simpatia pela medíocre figura de Zelensky.

Ele fazia essas reflexões ao mesmo tempo em que continuava fazendo filmes ousados e inovadores, dando continuidade à continua tarefa de estar sempre renovando a linguagem do cinema, que foi a Arte que ele amou mais do que todas e que considerava como sendo a mais importante.  

Inegavelmente, Jean-Luc Godard criou uma obra vasta, rica, complexa e diversificada, de um perfil claramente moderno e, ao mesmo tempo, humanista.

Godard tornou-se Imortal e , depois, morreu. 

Mas a sua obra genial, moderna, ousada e inovadora permanece.

Je Vous Salue, Godard!  

Legião Urbana e Paralamas do Sucesso citaram Godard e o filme 'Je Vous Salue, Marie' em músicas como 'Eduardo e Mônica' e 'Selvagem?'. Na letra do Paralamas nós lemos 'E a liberdade cai por terra aos pés de um filme de Godard'.

Links:

Nouvelle Vague - Muito além de se fazer filmes:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2022/12/nouvelle-vague-muito-alem-de-se-fazer.html

Texto de Alexandre Astruc, de 1948, lança a ideia de Cinema Autoral:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2022/12/alexandre-astruc-escreveu-o-texto-que.html

Relação de Longas Metragens de Godard:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2022/11/godard-relacao-de-longas-metragens-do.html

Godard será moderno para sempre (por Stephanie Zacharek):

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2022/09/jean-luc-godard-sera-moderno-para.html

Luc Moullet, Godard e Jean-Pierre Gorin em 2004. Provavelmente este foi o primeiro e o último encontro dos dois depois do fim do Grupo Dziga Vertov. Foto de Jean Gaumy.

Entrevista com Agnés Guillemot: Godard olha tudo com paixão:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2022/09/agnes-guillemot-montadora-dos-filmes-de.html

Fabrice Aragno: Quando Godard começa a filmar ele parece um menino:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2021/08/fabrice-aragno-quando-godard-comeca.html

Raoul Coutard comenta sobre a maneira incomum de filmar de Godard:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2021/07/raoul-coutard-comenta-sobre-maneira.html

Le Mépris (O Desprezo) - Os conflitos entre Godard e os produtores:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2021/06/le-mepris-o-desprezo-quando-godard.html

Cena de 'Filme Socialismo' (2010), no qual Godard reflete sobre a decadência e a crise da Europa e na qual o cineasta várias tecnologias distintas, incluindo a digital. Grande parte do filme se passa em um navio de cruzeiro, o Costa Concordia, que passa por várias cidades que estão ligadas à Arte e História da Europa (Alexandria, Barcelona, Odessa...).

Os curtas metragens dos cineastas da Nouvelle Vague:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2020/12/nouvelle-vague-os-curtas-e-medias.html

Blade Runner e Alphaville - Conheça 25 semelhanças existentes entre os 2 filmes:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2021/01/blade-runner-e-alphaville-conheca-25.html

Godard - 13 histórias sobre o cineasta que revolucionou o Cinema:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2021/01/godard-13-historias-curiosas-sobre-o.html

Acossado - Afinal, quem escreveu o roteiro do filme?:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2021/02/acossado-de-godard-afinal-quem-escreveu.html

Comentando os 10 filmes de Godard:

https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2020/12/comentando-os-10-filmes-de-godard-que-o.html

Godard filmando 'Adeus a Linguagem' (2014), com Héloise Godet e Kamel Abdelli.

Trailer de 'Sympathy for the Devil':

https://www.youtube.com/watch?v=juChsS5KvhQ

Matéria do 'Jornal Nacional' sobre a morte de Godard:

https://www.youtube.com/watch?v=MBadSBXStbY&t=94s

Godard filmando o The Jefferson Airplane em Novembro de 1968, em Nova York:

https://www.youtube.com/watch?v=vuwMEiNg3B8

Diálogo entre Godard e Fritz Lang em 1963 (legendas em Espanhol):

https://www.youtube.com/watch?v=XcAZu3GkBwI

Entrevista com Godard em 1963 (Legendas em Português):

https://www.youtube.com/watch?v=w3U2hDVZ940

Marcelo Janot comenta sobre a obra de Godard e a Nouvelle Vague:

https://www.youtube.com/watch?v=zvG624w5igA

Jean-Luc Godard em cena de um vídeo que ele gravou para o Festival de Berlim de 2022. Este foi o último vídeo que o Grande Mestre gravou e que veio a público.

Cena de dança em 'Bande a Part' (1964):


Cena de 'Masculino Feminino' (1966; legendas em Português):

Paralamas do Sucesso cantando 'Selvagem?' ao vivo:


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