Nouvelle Vague: Muito além de se fazer filmes!

Nouvelle Vague: Muito além de se fazer filmes! - Marcos Doniseti!

A Nouvelle Vague foi um dos mais importantes e influentes movimentos cinematográficos da história.

Os 'Jovens Turcos', a Nouvelle Vague e o Cinema!

O movimento que ficou conhecido com o nome de 'Nouvelle Vague' foi, inegavelmente, um dos mais importantes, inovadores e revolucionários da história do Cinema. Sua influência e alcance se espalhou pelo mundo todo e por várias gerações.

Porém, grande parte do que se comenta sobre o movimento acaba sendo limitado à realização dos filmes que o lançaram e o tornaram famoso internacionalmente ('Os Primos', 'Os Incompreendidos', 'Acossado', em especial), sendo que a Nouvelle Vague foi muito além disso.

A Nouvelle Vague não mudou radicalmente, apenas, a forma de se fazer filmes, realizando obras de baixo orçamento, em cenários naturais, com equipe reduzida, sobre temas contemporâneos, sem grandes estrelas, ou até com a utilização de muitas pessoas que não eram atores ou atrizes. 

Se a Nouvelle Vague fosse apenas isso, então qualquer diretor que realizasse filmes utilizando essa 'receita' poderia ser incluído nessa história. E não foi assim.

Ela também não se limitou mudar a forma dos filmes, criando outra maneira de contar as histórias, rompendo com a forma tradicional, que predominava na era clássica do Cinema. 

A Nouvelle Vague fez isso, sim.

Porém, a Nouvelle Vague também modificou de maneira significativa a própria percepção que a crítica de cinema, a intelectualidade e o público tinham do próprio Cinema, bem como sobre toda uma geração de cineastas, de Hollywood, que até aquela época era tratada com total desprezo (Hitchcock, Hawks...). 

Belmondo em 'A Bout de Souffle': Telefone, Rádio, Livro, Discos, Pinturas. É como diziam os 'Jovens Turcos' da 'Cahiers du Cinéma' que criaram a Nouvelle Vague: Todas as formas de Arte cabem em um filme. E a presença do telefone, do rádio e do LP mostra o Cinema como um forma de arte típica da civilização industrial. A Nouvelle Vague mostrou a França contemporânea nas telas do cinema, o que antes não acontecia.

A Nouvelle Vague representou, sim, a emergência de uma nova geração de cineastas, produtores, intérpretes, técnicos, que conseguiram, finalmente, se integrar à indústria do cinema, modificando radicalmente o seu modo de funcionamento, bem como mostrou uma maneira própria e incomum de se relacionar com o Cinema, que era muito diferente do habitual. 

E as próprias instituições e valores sociais dominantes acabaram sendo questionados pelos cineastas do movimento, que foram até perseguidos e censurados em função disso. Desta maneira, a Nouvelle Vague também entrou em choque com as principais instituições do Estado e da sociedade francesa, que eram bastante autoritárias naquela época, muito mais do que hoje. 

Assim, vários dos filmes dos cineastas do movimento foram censurados, sendo que os casos mais extremos foram os de 'Le Petit Soldat' (1960), de Godard, que foi liberado para exibição pública apenas no final de janeiro de 1963, mais de dois anos depois de ter sido filmado, e 'A Religiosa' (1966), de Rivette, cuja proibição durou alguns meses.

Nesse texto eu comento quais foram as principais mudanças que foram defendidas e promovidas pelos integrantes do movimento (Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette e Rohmer) na indústria cinematográfica francesa. 

Espero que, por meio disso, fique claro porque entendo que outros cineastas de grande talento, e que eram próximos da Nouvelle Vague, jamais chegaram a fazer parte dela. 

1- Forma de se relacionar com o Cinema!

Os 'Jovens Turcos' da 'Cahiers du Cinéma': Jean-Luc Godard, Éric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette e François Truffaut.

Nouvelle Vague: Cinema é o ar que os 'Jovens Turcos' da Cahiers du Cinéma (Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette, Rohmer) respiravam. Suas vidas giravam em torno do Cinema. Não havia nada de mais importante para eles.

Assim, eles nunca se viram apenas como meros profissionais que são remunerados para trabalhar em um filme (como um empregado que atuava como um diretor, roteirista, etc). Eles assistiam aos filmes dos seus cineastas preferidos, várias vezes cada filme, debatiam intensamente sobre os filmes, escreviam críticas, resenhas e ensaios sobre as obras destes cineastas. 

A maneira como eles se relacionavam com o Cinema era, portanto, muito diferente das pessoas comuns. Assim, não foi à toa que todos os cinco mantiveram essa paixão pelo Cinema e filmaram durante todas as suas vidas.

Como era antes: Cinema era, muitas vezes, apenas mais uma atividade que os diretores desenvolviam ou era visto apenas como um trabalho, que faziam de forma remunerada. Eles eram apenas profissionais fazendo um trabalho como outro qualquer.

2- Defesa do Cinema Autoral!

'Uma Certa Tendência do Cinema Francês': Texto de François Truffaut, que foi publicado na edição 31 da 'Cahiers du Cinéma' (Janeiro de 1954), que representou um ataque frontal ao cinema hegemônico da França, chamado de 'Tradição de Qualidade'.

Nouvelle Vague: O cineasta é o autor do filme, do mesmo jeito que o escritor é o autor do livro que escreve e o pintor é o autor dos seus quadros. Embora um filme seja fruto de um trabalho coletivo, é o cineasta que controla todas as etapas.

Exemplo: Godard sempre controlou todas as etapas da realização dos seus filmes (pré-produção; filmagem; montagem). Ele até mesmo procurava influenciar a maneira como os seus filmes eram promovidos e divulgados.

Como era antes: O diretor é apenas mais um profissional envolvido na produção de um filme, trabalhando de forma coletiva, junto com produtores, roteiristas, atores, atrizes, diretores de fotografia, músicos. Ele não comandava nada e sempre fazia o que lhe mandavam, como se fosse um operário em uma linha de produção.

3- Defesa do Cinema enquanto a mais importante forma de Arte!

André Bazin foi um dos três fundadores da 'Cahies du Cinéma', junto com Jacques Doniol-Valcroze e Joseph Marie Loduca. A primeira edição da revista foi publicada em Abril de 1951. Durante a década de 1950 a 'Cahiers' foi, junto com a 'Arts', o principal veículo de comunicação dos 'Jovens Turcos', que criaram a Nouvelle Vague.

Nouvelle Vague: Para os 'Jovens Turcos' o Cinema era a forma de Arte mais importante, mais significativa até do que as chamadas Belas Artes (Literatura, Artes Plásticas, Música, Teatro, Arquitetura e Escultura). Eles também diziam que o Cinema era a única forma de Arte que podia incluir todas as outras formas de Arte.

Eles travaram uma intensa batalha cultural em torno desta ideia, durante toda a década de 1950, e acabaram triunfando. Desta maneira, o Cinema conquistou um reconhecimento muito maior do que aquele que possuíra até então. Foi somente a partir deste momento que o Cinema passou a ser visto como uma forma de Arte respeitada e que não era inferior às demais Artes. 

Como era antes: O cinema já era reconhecido como uma forma de Arte, mas era pouco respeitado, sendo considerado como sendo muito menos importante do que as Belas Artes. Na França, nas décadas anteriores à emergência da Nouvelle Vague, ele era mal visto e muitos procuravam esconder o seu envolvimento com o Cinema, como foi o caso de Éric Rohmer.

O nome verdadeiro de Rohmer era Jean-Marie Maurice Schérer. Ele era professor de literatura em um Liceu e já tinha escrito e publicado um livro pela editora Gallimard, a mais prestigiada da França. 

Ele era apaixonado por Cinema, mas como este era muito mal visto por quase todos os intelectuais e literatos da época (e até por sua mãe), Schérer tratou de esconder o seu envolvimento com o mesmo e, para isso, passou a utilizar o pseudônimo Éric Rohmer quando escrevia críticas, resenhas e ensaios sobre Cinema.

4- Defesa do Cinema da era clássica de Hollywood!

Alfred Hitchcock (1899-1980) foi um dos grandes cineastas da história, mas até antes dos 'Jovens Turcos afirmarem o valor artístico de suas obras, e de outros cineastas, ele era visto como um diretor que fazia apenas filmes caça-níqueis e sem qualquer valor artístico.

Nouvelle Vague: Para os 'Jovens Turcos' os cineastas da era clássica de Hollywood (Alfred Hitchcock, Howard Hawks, John Ford, Samuel Fuller, Nicholas Ray...) já eram autores de suas obras. Portanto, para estes jovens franceses, os cineastas de Hollywood já eram verdadeiros artistas, sendo merecedores de respeito, o que não acontecia até aquele momento.

Os jovens cinéfilos franceses passaram a assistir aos filmes destes cineastas depois que a Segunda Guerra Mundial acabou e, com isso, a França foi invadida por centenas de filmes produzidos por Hollywood e que cuja exibição havia sido proibida pelos ocupantes nazistas da França entre 1940 e 1944 (os nazistas alemães foram expulsos da França em agosto de 1944).

E quando se tornaram críticos da 'Cahiers du Cinéma', os 'Jovens Turcos' escreveram inúmeros textos (críticas, ensaios) sobre as obras destes cineastas, exaltando os mesmos. Isso irá fazer com que os 'Jovens Turcos' entrassem em conflito com a crítica e com a intelectualidade francesa do período.

Eles também fizeram inúmeras entrevistas com tais cineastas, deixando aos próprios inteiramente boquiabertos com o elevado nível de conhecimento que aqueles jovens críticos possuíam sobre a trajetória e a obra deles. E durante a década de 1950 os 'Jovens Turcos' conseguiram convencer a muitos de que as suas ideias sobre estes cineastas eram corretas, vencendo mais essa batalha.

Desta maneira, os 'Jovens Turcos' foram os grandes responsáveis por modificar inteiramente a maneira como as obras destes cineastas era vista. Somente depois disso é que Hitchcock, Hawks, Ford, Ray, Fuller, entre outros, tiveram a sua obra reavaliada pela crítica, pelo público e pela intelectualidade e passaram efetivamente a ser respeitados.

Como era antes: Os principais cineastas de Hollywood eram considerados, pela crítica e pela intelectualidade, bem como pelo público de cinema, como sendo meros empregados dos grandes estúdios, que limitavam-se a obedecer as ordens que recebiam dos produtores que os comandavam.Tais cineastas eram desprezados, tratados como meros realizadores de filmes caça-níqueis, que eram desprovidos de qualquer valor artístico.

5- Revolucionando o cinema francês!

O diretor Claude Autant-Lara foi um dos mais criticados por Truffaut em seus textos. O diretor, um dos principais nomes do cinema de 'Tradição de Qualidade', nunca o perdoou por isso e também atacou Truffaut.

Nouvelle Vague: Os 'Jovens Turcos' atacavam duramente ao cinema francês hegemônico dos anos 1950, que era chamado de 'Tradição de Qualidade'. Essa expressão era usada porque os filmes eram muito bem produzidos, bem acabados tecnicamente.

Mas os 'Jovens Turcos' da 'Cahiers du Cinéma' diziam, corretamente, que os filmes eram padronizados, conservadores, sendo marcados pela mesmice. Truffaut escreveu um texto ('Por uma nova tendência do cinema francês'), que foi publicado na edição 31 da 'Cahiers du Cinéma', em janeiro de 1954, no qual trucidou com o cinema francês do período. 

E o mesmo Truffaut, em um outro texto, de 1957, classificou tais filmes como sendo 'filmes mortos', ou seja, desprovidos de alma.

Eles defendiam a realização de obras de caráter autoral, que refletissem a visão de cada cineasta, permitindo a criação de um cinema muito mais ousado e inovador, tanto na forma, quanto no conteúdo. E foi o que eles fizeram quando passaram a ter condições de realizar os seus primeiros filmes (curtas metragens e, depois, longas).

Em cena de 'Charlotte e Véronique - Todos os garotos se chamam Patrick', curta metragem dirigido por Godard em 1957, vemos um personagem lendo a edição da 'Arts' na qual temos um texto escrito por Truffaut ('O Cinema Francês Está Morrendo Sob Falsas Lendas'), no qual ele ataca duramente ao cinema francês comercial do período.

Aliás, até o presidente do CNC (Centre National de Cinématographie), Jacques Flaud, reconheceu ssa realidade (o conservadorismo, a pobreza artística e a padronização do cinema francês) e criou, já em 1953, um 'Prêmio pela Qualidade', que cobria os custos de filmes inovadores que fossem feitos por jovens cineastas. 

Assim, vários filmes de jovens cineastas receberam esse prêmio, incluindo 'Le Beau Serge' (Chabrol; 1958) e 'Ascensor para o Cadafalso' (Louis Malle; 1958). 

Sobre o seu primeiro longa metragem, 'Le Beau Serge' ('Nas Garras do Vício'; 1958), Claude Chabrol disse o seguinte: "Consegui fazer este filme exatamente como eu queria... como um filme de autor, quer dizer, como um romance. Tentei fazer um filme que não pertencesse a um gênero específico, que não fosse um filme policial ou um filme camponês.".

E junto com a emergência de uma nova geração de cineastas autorais, mesmo daqueles que não fizeram parte da Nouvelle Vague, embora fossem próximos dela (Varda, Demy, Bresson, Melville, Malle), também tivemos o surgimento de inúmeros novos produtores, roteiristas, atrizes, atores, diretores de fotografia. 

'Le Beau Serge' ('Nas Garras do Vício'; Chabrol; 1958): Jean-Claude Brialy, Bernadette Lafont e Gérard Blain foram três dos novos nomes que foram revelados pela Nouvelle Vague.

A relevância deste nomes para a história do cinema francês é inegável. E basta citar alguns nomes para se constatar isso: Raoul Coutard, Jean Gruault, Paul Gégauff, Charles Bitsch, Jean-Paul Belmondo, Anna Karina, Jean-Pierre Léaud, Jeanne Moreau, Gérard Blain, Bernadette Lafont e, mais adiante, Juliet Berto.

Enfim, o cinema francês passou por um radical processo de renovação, tanto no aspecto formal, quanto de conteúdo, bem no dos profissionais que trabalhavam na indústria cinematográfica do país. Eles mostraram, em seus filmes, a nova sociedade francesa do Pós Guerra, com os seus jovens, que tinham novos valores e interesses, e que falavam uma outra linguagem, diferente das gerações anteriores. 

Com era antes: A indústria cinematográfica francesa era controlada por um pequeno número de profissionais (roteiristas, diretores, intérpretes), que formavam um tipo de clube fechado, no qual quem estava dentro não saía e quem estava fora não entrava. As suas principais estrelas eram as mesmas dos anos 1930 e 1940 (Jean Gabin, Michel Simon, Michèle Morgan...). Os roteiristas eram hegemônicos e determinavam qual seria o resultado final da obra.

Os filmes eram sempre realizados pelas mesmas pessoas, da mesma forma, como se fossem feitos uma linha de produção em série, resultando em obras padronizadas. Não havia espaço para qualquer visão particular do cineasta e este era um cinema avesso à inovação, que rejeitava novas ideias, bem como novos nomes, a não ser que fizessem tudo de acordo com o que já se fazia.

6- Conflitos dos Jovens Turcos com a intelectualidade e com a crítica cinematográfica francesa!

Pierre Kast e Jacques Doniol-Valcroze foram dois grandes nomes da crítica e do cinema francês e que deram apoio aos 'Jovens Turcos' e para a Nouvelle Vague. Eles também fizeram muitos filmes, mas sem alcançar o mesmo destaque de Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette e Rohmer.

Nouvelle Vague: A 'Cahiers du Cinéma' (mensal) e a 'Arts' (semanal) serão as principais publicações que irão abrigar toda uma nova geração de críticos (Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette, Rohmer), que ficaram conhecidos com o apelido de 'Jovens Turcos', que lhes foi dado por André Bazin, editor da 'Cahiers'.

Bazin, junto com outro dos criadores da revista, Jacques Doniol-Valcroze, irá abrigar e proteger esses jovens que pretendiam revolucionar o cinema francês. Eles fizeram isso mesmo sem concordar com muitas das ideias e das ações dos 'Jovens Turcos', pois reconheciam o talento e o brilhantismo dos cinco.

André Bazin e Doniol-Valcroze, junto com Alexandre Astruc, Pierre Kast e mais alguns, foram os antecessores dos 'Jovens Turcos', e fizeram parte de uma geração anterior de críticos e de cineastas (destes que citei, Bazin foi o único que nunca dirigiu um filme).

Os 'Jovens Turcos' travaram inúmeras batalhas culturais durante a década de 1950 e, para isso, foi fundamental contar com o apoio e o respaldo desta geração anterior, com quem os membros da Nouvelle Vague aprenderam lições importantes, como a de realizar filmes de baixo orçamento para não ter que depender dos produtores.

Edição 17 da revista 'Positif', que se tornou a grande rival da 'Cahiers du Cinéma' durante a década de 1950 e que atacou duramente aos filmes dos cineastas da Nouvelle Vague.

Entre as principais batalhas culturais que os 'Jovens Turcos' travaram durante toda a década de 1950, nós tivemos alguns temas principais, como a defesa do Cinema Autoral (Truffaut falava de uma 'Política dos Autores'), dos cineastas da era clássica de Hollywood, bem como a relevância do Cinema enquanto forma de Arte. 

Tais batalhas serão travadas contra uma velha crítica cinematográfica, tradicional e ligada ao PCF. Os 'Jovens Turcos' sairão vitoriosos destas batalhas, mas também irão criar toda uma geração de inimigos que irão fazer duras críticas, até com ataques pessoais, a todos eles quando eles se tornaram cineastas. 

No entanto, o que conta a favor dos 'Jovens Turcos' é que eles transformaram a 'Cahiers du Cinéma' na mais importante e influente revista de Cinema do mundo e, também, criaram um dos mais influentes e revolucionários movimentos cinematográficos da história. 

Enquanto isso, os críticos que foram os seus inimigos nunca fizeram nada que prestasse, jamais tendo realizado um filme sequer que valesse a pena ser visto.

Cena de 'Le Quadrille' (40 minutos), de 1950, que foi o primeiro filme dirigido por Jacques Rivette e que foi realizado pelos membros da 'Gangue Schérer'. Godard foi produtor e ator do filme, pois foi ele que conseguiu o dinheiro para a sua realização, vendendo algumas edições raras da biblioteca da família, o que fez sem autorização.

Como era antes: No período do Pós Guerra a intelectualidade e a crítica cinematográfica da França eram dominadas pelo Partido Comunista Francês (PCF), que saiu da Segunda Guerra Mundial na condição de maior partido do país (obteve 28% dos votos na primeira eleição para o Parlamento realizada logo após o fim da Guerra, em 1945). 

E os intelectuais e críticos de cinema franceses que eram ligados ao PCF (muitos eram filiados, outros eram simpatizantes) defendiam o cinema de 'Tradição de Qualidade' que se produzia no país. Uma das principais publicações que os abrigavam eram a 'Positif', cujos críticos foram os grandes rivais dos 'Jovens Turcos' da 'Cahiers du Cinéma'. 

E como os 'Jovens Turcos' da Nouvelle Vague irão atacar a este cinema, pelo seu conservadorismo e mesmice, eles também irão entrar em choque com os intelectuais e com a crítica cinematográfica que o defendiam.

Além disso, as instituições do Estado francês eram bastante autoritárias e conservadoras, o que limitava a participação das novas gerações nas mesmas. Assim, não foi à toa que esta Nouvelle Vague (Nova Geração) entrará em choque com elas.

7- Mudança de Geração, Censura e choque com as Instituições do Estado!

Edição de Outubro de 1957 da revista semanal de informações francesa "L'Express", que criou a expressão 'Nouvelle Vague'.

Nouvelle Vague: Em 1957 a revista semanal de informações "L'Express" publicou seis edições consecutivas nas quais analisava os resultados de uma pesquisa qualitativa que a publicação encomendou junto ao Ifop (Instituto de Pesquisas e Opinião Pública). 

Essa pesquisa mostrou que os jovens franceses, na faixa de 17 aos 29 anos, possuíam valores e ambições muito diferentes daqueles que eram defendidos pelos membros das gerações anteriores. A editora da revista, Françoise Giroud, criou a expressão 'Nouvelle Vague' (Nova Geração) para designar esse jovens e avaliou que a emergência deles iria transformar a sociedade francesa. 

E foi exatamente isso que aconteceu. 

Desta maneira, quando surgiu um novo grupo de críticos e cineastas (os 'Jovens Turcos', apelido que foi criado por André Bazin, editor da 'Cahiers du Cinéma) que ambicionava mudar radicalmente o cinema francês eles foram imediatamente chamados de Nouvelle Vague pela mesma revista. 

E durante os anos finais da década de 1950 e durante toda a década de 1960 esse grupo de cineastas irá realizar filmes que irão incomodar aos setores mais conservadores do Estado e da sociedade francesas. 

Edição número 1 do jornal 'Gazette du Cinéma', criado pelos membros da 'Gangue Schérer'. Dos cinco, apenas Truffaut nunca escreveu e publicou no jornal, que teve 5 edições, entre Maio e Novembro de 1950.

O cinema francês pré-Nouvelle Vague simplesmente não mostrava a realidade francesa da época, com seus problemas e conflitos. E muitos dos filmes tradicionais eram adaptações de clássicos da literatura dos séculos ou de décadas passadas. Era a França do passado que se mostrava nos cinemas. 

Mas isso iria mudar com a emergência da Nouvelle Vague.

Foi o que aconteceu quando, por exemplo, Chabrol, Truffaut e Godard lançaram os seus primeiros longas metragens, que mostravam aspectos da sociedade francesa do período e que, até então, estavam ausentes do cinema criado no país, como a liberdade comportamental e sexual (vide 'Os Primos', de Chabrol; 1958), a marginalidade de adolescentes ('Os Incompreendidos'; Truffaut; 1958) e de adultos ('Acossado'; Godard; 1959).

Esses três filmes, em especial, fizeram muito sucesso, de público e de crítica, e também receberam vários prêmios importantes. Truffaut conquistou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes de 1959, enquanto que Godard conquistou o Urso de Prata de Melhor Diretor no Festival de Berlim de 1960.

Mas os conflitos com os poderes do Estado não demoraram. 

Isso aconteceu com Godard já em 'Acossado' (1959), pois ele foi obrigado a cortar cenas nas quais apareciam o general e presidente Charles De Gaulle desfilando ao lado de Eisenhower, então presidente dos EUA. Godard mostrou cenas do desfile no filme, mas não obteve autorização para mostrar os dois líderes. 

O segundo longa metragem de Godard, que foi 'Le Petit Soldat' (1960), também acabou sendo censurado pelo governo francês, de forma muito mais drástica, porque o mesmo tratava da Guerra da Argélia (1954-1962), que promoveu uma radicalização política e ideológica na França, gerando muitos conflitos. 

'Le Petit Soldat' (1960), de Godard, atacava durante a Guerra da Argélia e, por isso, foi censurado pelo governo francês, que somente liberou o filme para exibição pública no final de Janeiro de 1963, dez meses depois do fim da guerra, que ocorreu em Março de 1962.

E o filme de Godard mostrava uma visão bastante crítica e pessimista em relação à guerra, chegando a prever uma derrota francesa, o que realmente acabou acontecendo.

Com isso, 'Le Petit Soldat' (1960) somente foi liberado para exibição pública na França no final de Janeiro de 1963, quase três anos depois de ser filmado e quase um ano depois que a Guerra da Argélia já tinha terminado, o que ocorreu em Março de 1962.

Na época, quando alguns membros da indústria cinematográfica francesa chegaram a tentar começar um movimento de protesto contra a censura ao 'Le Petit Soldat', o governo avisou que aqueles que participassem do mesmo seriam proibidos de continuar trabalhando no cinema do país. Com isso, os protestos não aconteceram e a insatisfação foi silenciada. 

Mais adiante, Godard voltou a ter problemas com a censura, quando fez o filme 'Uma Mulher Casada', sendo que o título original era 'A Mulher Casada'. E o cineasta ainda foi obrigado a cortar 3 minutos do filme. Sem isso, ele não seria liberado para exibição pública. E como já afirmei, o filme 'A Religiosa' (1966), de Jacques Rivette, também chegou a ser censurado por alguns meses.  

Estes casos deixam claro que a Nouvelle Vague estava incomodando aos setores mais conservadores da sociedade e do Estado franceses. E isso acontecia porque eles possuíam valores, ideias e ambições bem diferentes daqueles que eram defendidos pelas gerações anteriores, tal como a pesquisa encomendada pela "L'Express" havia mostrado. 

Conclusão!


'Adieu Philippine' (1962), dirigido por Jacques Rozier, é um dos filmes da Nouvelle Vague que mostra a emergência de uma juventude moderna na França da época.

Quando se comenta a respeito da Nouvelle Vague, considero que é um erro tratar apenas da realização dos filmes, pois a emergência dessa nova geração de críticos e cineastas que os criou se deu em um contexto de transformações que ocorriam na França e em grande parte do mundo industrializado no Pós Guerra.

O período que vai de 1948 até 1973 foi chamado, pelo historiador Eric Hobsbawm, de 'Anos Dourados' do Capitalismo, pois foi um período de grande prosperidade, no qual tivemos a emergência de uma sociedade de consumo global, principalmente nos países mais industrializados da época (EUA, Canadá, Austrália, Europa Ocidental), nos quais tivemos a criação de um generoso Estado de Bem Estar Social (mais generoso em alguns países, menos em outros). 

O pleno emprego e a inflação sob controle, em patamar bastante reduzido, a criação de empregos bem remunerados, a entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho, a criação de uma poderosa indústria cultural, a massificação da TV, o estímulo ao consumo via publicidade e propaganda também seriam elementos importantes dos Anos Dourados. 

Eles seriam, também, aspectos que estariam presentes em vários dos filmes da Nouvelle Vague, Godard, em especial. Exemplos disso são os filmes 'Uma Mulher Casada' (1964) e '2 ou 3 Coisas Que Eu Sei Sobre Ela' (1966). 

Jeanne Moreau, Henri Serre e Oskar Werner em 'Jules et Jim' (1962), de Truffaut, mostra como as relações entre homens e mulheres estava mudando. Embora a história se desenvolva na época da Primeira Guerra Mundial, o filme se relaciona com a emergência da mulher moderna na França dos anos 1960, o que foi um aspecto importante da Nouvelle Vague, que modificou totalmente a maneira como as mulheres eram mostradas no Cinema. 

Porém, havia também um outro lado neste período (1948-1973), com a existência de inúmeros problemas e conflitos, incluindo:

- A continuidade da exploração da força de trabalho, o que irá resultar em uma nova onda de greves em vários países por volta de 1967-1968 (Itália, França);

- A realidade da discriminação racial, que vai emergir com as lutas pelos Direitos Civis e os Black Panthers nos EUA;

- O fato das mulheres ganharem menos do que os homens, somado a outras violências das quais eram vítimas, vão ser alguns dos principais fatores para a emergência do Feminismo;

- A Corrida Armamentista e Guerra Fria entre EUA e URSS, que esquentou em alguns momentos, como nas Crises de Berlim (1948 e 1961), nas Guerras no então Terceiro Mundo (Coreia, Indochina, Argélia) e na Crise dos Mísseis (outubro de 1962);

- O movimento contra a Guerra do Vietnã, que alcançou uma dimensão global naquela época, com manifestações acontecendo no mundo inteiro;  

- O caráter autoritário e fechado das instituições do Estado, que irá alimentar um forte conflito de gerações;

- As perseguições aos intelectuais de Esquerda, principalmente na época do Macarthismo, com a famosa caça às bruxas que atingiu até mesmo a muitos em Hollywood.

A belíssima Nadine Ballot em cena de 'La Punition' (1962), filme de Jean Rouch, cineasta muito influente e respeitado, embora pouco conhecido. Godard foi um dos cineastas influenciados pela obra de Rouch.

Os cineastas da Nouvelle Vague, principalmente Godard, o mais radical e inovador de todos eles, irão mostrar e refletir criticamente sobre estes acontecimentos e fenômenos, que eram contemporâneos aos da realização dos seus filmes. 

Assim, é perfeitamente possível usar, principalmente, os filmes de Godard deste período, que já eram bastante inovadores no aspecto formal, para conhecer e estudar os acontecimentos daquela época.

Portanto, a Nouvelle Vague modificou radicalmente a situação do cinema francês e refletiu criticamente sobre a mesma França que os cineastas mostravam em seus filmes, influenciando a maneira de pensar e agir de toda uma nova geração. 

Logo, não há como separar a Nouvelle Vague de todo este processo histórico que se desenvolveu durante o Pós Guerra e para compreendê-la é fundamental inserir a mesma neste contexto mais amplo de profundas mudanças que se desenvolveu a partir de 1945.

'La Chinoise' (1967) é um dos principais filmes de Godard, que antecipou os acontecimentos do Maio de 68 francês, bem como os dilemas e impasses do Pós Maio de 68, mostrando que o sectarismo e o isolamento dos movimentos de Extrema Esquerda os levaria à derrota. Foi exatamente o que aconteceu.

Links:

Como funciona o CNC: 

https://filmenomundo.wordpress.com/2014/02/19/cnc-o-orgao-do-cinema-frances/

Chabrol diz que fez 'Le Beau Serge' como um filme autoral:

https://www.radiofrance.fr/franceculture/podcasts/les-nuits-de-france-culture/claude-chabrol-j-entends-le-beau-serge-comme-un-film-d-auteur-j-ai-essaye-de-montrer-l-atmosphere-d-un-pays-qui-s-en-va-a-la-derive-9787014

Texto sobre 'Le Beau Serge':

https://newstrum.com/2021/02/28/le-beau-serge-de-claude-chabrol-miseres/

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