Charles Bitsch conta a história da 'Cahiers du Cinéma' e da 'Nouvelle Vague'!
Charles Bitsch conta a história da 'Cahiers du Cinéma' e da 'Nouvelle Vague'!
Entrevista com Charles Bitsch
Do 'Sense of Cinema' - por Sally Shafto
Dossiê especial de Março de 2008, The New Wave
A carta de Charles Bitsch como crítico do Cahiers du cinéma.
Esta entrevista foi conduzida em francês durante três tardes em Outubro de 1998 (8, 15 e 19). O autor transcreveu, traduziu, resumiu e ocasionalmente corrigiu essas entrevistas.
MEMÓRIAS DOS FILMES ANTIGOS
SHAFTO: Antes de fazer algumas perguntas sobre os 'Cahiers du Cinéma' dos anos 1950, conte-nos um pouco sobre sua infância. Você nasceu, eu acredito em Mulhouse.
BITSCH: Sim, em 1931.
P - Quando você se mudou para Paris?
R - Em 1934, com meus pais.
P - A sua infância, como a de François Truffaut, foi de cinéfilo?
R - Sim. Minhas primeiras memórias de filme são muito antigas. No ano passado ou no início deste ano, vi um filme alemão sobre a Arte, filme que meu pai me levou para ver. Eu devia ter 4 ou 5 anos na época. Era uma história que se passava no Pólo Norte e era boba: 'S.O.S. Iceberg' [Tay Garnett, 1933].
Havia um explorador no gelo que quebrou e ele se viu sozinho em um iceberg. Quando apareceu um urso, fiquei extremamente desconfortável e meu pai teve que me tirar do teatro. Mais de sessenta anos depois, reconheci este filme pela sinopse do enredo no jornal e pensei: “Não é possível”, porque é a minha primeira memória fílmica.
Lembro que a vimos em um teatro chamado Cinéac St. Lazare que ficava na estação de trem St. Lazare e que desde então desapareceu. Lembro-me muito bem: a bilheteria, a entrada do cinema.
Na segunda vez, assisti ao filme até o fim. Há um momento em que o iceberg quebra e o cara se vê diante de um urso. Mas a história termina bem ...
Foi em 1938, quando eu tinha sete anos, que decidi que queria fazer filmes. Eu morava no 17º arrondissement, onde havia um cinema chamado 'Ciné Citroën' que era muito barato e para onde ia sozinho quando tinha um dinheirinho.
Minha ansiedade desempenhou um papel novamente. Lembro-me de ver 'The Plainsman', de Cecil B. DeMille (1936). Há uma cena em que Buffalo Bill cai nas mãos dos índios e é preso a uma estaca para ser torturado, com os índios dançando ao seu redor. E, novamente, não consegui assistir o que estava na tela.
Mas eu também não queria sair do teatro. Como não suportava olhar para a tela, me virei para olhar para o fundo do cinema. E eu vi que havia um buraco com luz e que havia uma espécie de feixe e então voltei para a tela, e depois me virei novamente e vi que havia coisas se movendo.
De repente, o cinema tornou-se algo menos mágico. Percebi que o cinema também foi fabricado. Naquele dia, decidi que precisava aprender a fazer imagens assim.
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Charles Bitsch e François Truffaut. |
P - Essa é uma história maravilhosa. Eu me pergunto se você tem lembranças de algum outro cinema em particular, como o Grand Rex?
R - Descobri o Rex depois. Mas um cinema de que me lembro da minha infância que era absolutamente soberbo era o Gaumont-Palace no 17º arrondissement (obs: bairro de Paris) onde vivíamos.
P - Você deve ter se cruzado com o Truffaut aí.
R - Sim, podemos ter. A certa altura, nós nos mudamos para a rue Barye no 17º arrondissement, e era o teatro mais próximo. Lembro que meus pais costumavam me levar lá todos os sábados à noite.
P - Você tem lembranças do cinema durante a Ocupação?
R - Sim, este é apenas o período de que estou falando. Assisti muitos filmes franceses, porque na época não havia muito mais para ver. Eu me lembro de alguns filmes italianos, filmes de aventura na Amazônia.
Lembro-me de ter visto alguns filmes alemães também, como 'White Slaves' [Weiße Sklaven, Karl Anton, 1936]. Só mais tarde, depois de ver o 'Encouraçado Potemkin' [Bronenosets Potyomkin, Sergei M. Eisenstein, 1925], entendi que o filme alemão era uma resposta ao filme russo.
P - E aí, depois da guerra, você descobriu o cinema americano.
R - Sim, e foi um choque, mas não foi uma descoberta total porque eu tinha visto alguns filmes americanos antes da guerra. O último filme, ou um dos últimos filmes, que vi antes da derrota da França em Junho de 1940 foi 'Bringing Up Baby [Howard Hawks, 1938].
Depois da Libertação, sonhei em vê-lo de novo porque tinha uma memória extraordinária dele. Eu já era hawksiano porque o primeiro filme americano que realmente me transportou foi 'Força Aérea' [1943].
Obs: No caso da Libertação, Bitsch refere-se à expulsão definitiva dos nazistas alemães da França, o que ocorreu em Agosto de 1944.
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André Bazin, um dos grandes críticos de cinema da história. Ele também foi um dos fundadores da 'Cahiers du Cinéma', junto com Jacques Doniol-Valcroze e Joseph-Marie Lo Duca. |
CAHIERS E EMPRESA
P - Entre 1951 e 1953, você estudou na 'École Nationale de Photographie et de Cinéma'. Você terminou um curso lá?
R - Sim.
P - Acredito que você publicou seu primeiro artigo para a 'Cahiers' em 1955; o artigo era “Naissance du CinémaScope” (2). Como você veio para a 'Cahiers'?
R - Naquela época, havia duas escolas reconhecidas na profissão.
L’IDHEC e ENPC, popularmente chamada de 'École Lumière', onde estive. O Lumière era mais tecnicamente orientado do que o L'IDHEC; o ENPC treinou pessoal para fazer imagens e sons.
A L’IDHEC, por outro lado, era uma escola para pessoas que desejavam se tornar diretores, roteiristas ou editores. Eu queria dirigir, mas era um mundo onde não conhecia absolutamente ninguém. Achei que se aprendesse um trabalho em uma escola técnica, talvez tivesse mais chance de fazer as coisas mais tarde, foi assim que aconteceu.
Conheci o grupo da 'Cahiers' porque era um cinéfilo fervoroso e pertencia a um cineclube, denominado 'Objectif 49'. Fui um dos membros deste clube. Estive presente no 'Festival de Biarritz' que este cineclube organizou. Eu estive naquele ano e havia quartos para jovens de férias.
Truffaut, Alexandre Astruc e Jacques Rivette também estiveram lá naquele ano.
Obs: IDHEC foi o 'Instituto de Altos Estudos Cinematográficos', sediado em Paris, que foi criado em 1943, tendo sido absorvido, em 1986, pela 'Fundação Europeia de trabalho com Imagens e Sons'. Muitos cineastas e profissionais de cinema se formaram no IDHEC, como Ruy Guerra e Eduardo Coutinho.
P - E o Jean Cocteau?
R - Sim, o Cocteau estava lá, mas ele estava longe porque tinha hospedagem em um hotel.
P - E o Jean-Luc Godard?
R - Não, Godard não estava lá. Nem Eric Rohmer.
P - E o Roger Leenhardt?
R - Leenhardt, eu nunca soube realmente ... Foi meu primeiro contato com o que viria a ser o grupo 'Cahiers'. Passei um bom tempo discutindo filmes com eles.
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A primeira edição da 'Cahiers du Cinéma', em Abril de 1951. |
P - Você se lembra da exibição em Biarritz de 'Les Dames du Bois de Boulogne', de Robert Bresson?
R - Sim. Foi um filme maldito; bombardeou quando foi lançado em 1945.
Depois do festival, todos nós seguimos nossos próprios caminhos; nós nem trocamos endereços. Terminei meus estudos na Escola Lumière, que na época ficava na Vaugirard Street, em Paris, muito perto da estação ferroviária de Montparnasse. Perto dali, havia um cinema chamado Studio Parnasse, então dirigido por Jean-Louis Chéray.
Chéray exibia filmes estrangeiros em sua versão original e todas as terças-feiras à noite conduzia uma discussão após o filme. Uma das vantagens dessas noites era que eram precedidas de um jogo, uma espécie de quiz de cinema, e quem respondia mais rápido ganhava um ingresso grátis para o cinema.
Eu estava muito interessado porque na época o dinheiro era muito escasso. Então, às terças-feiras, eu ia assistir a essas projeções na rua Jules Chaplain e foi lá que me encontrei com meus velhos amigos Truffaut e Rivette. Começamos a marcar encontros lá às terças-feiras para ver outros filmes de Jacques Becker, Alfred Hitchcock e outros.
Começamos a nos ver mais regularmente como amigos. E como eu estava estudando para ser diretor de fotografia, também comecei a trabalhar como cameraman; Rivette me perguntou se eu poderia fazer um filme em 16 mm.
P - Qual era o filme?
R - Era 'Le Divertissement' [1952]. Então, foi assim que comecei a trabalhar como cinegrafista para Rivette, e um dia Truffaut me disse: “Ouça, você deveria escrever uma crítica para Cahiers”. Não fiquei muito entusiasmado porque nunca tinha escrito uma crítica. Ele respondeu que também nunca havia escrito uma, até um dia. Então eu tentei. Acho que meu primeiro foi em um filme de Richard Quine.
P - Você escreveu uma resenha de um filme de Quine em 1956, mas não acho que tenha sido o primeiro.
R - O filme de Quine foi uma comédia musical do CinemaScope.
P - O título do seu artigo era “Quine hourra!” (6); era uma resenha de um filme intitulado 'My Sister Eileen', de Richard Quine. Mas acho que seu primeiro artigo para os Cahiers foi “Naissance du CinémaScope” na edição de Junho de 1955. Após a publicação de seu infame artigo, “Une suree tendance du cinéma français”, em Janeiro de 1954, Truffaut parece ter sido realmente uma presença importante nos 'Cahiers'.
R - Esse artigo agitou um pouco as coisas. Os detalhes dessa história são muito bem contados na história dos 'Cahiers', de Antoine de Baecque [7] e também na biografia de Serge Toubiana e de Baecque de Truffaut [8]. Truffaut reescreveu o artigo várias vezes porque André Bazin não gostou dele. Quando o artigo apareceu, teve um grande destaque no mundo do cinema.
Foi engraçado porque me lembro que Jacques Doniol-Valcroze, que era um pouco mais velho, era um verdadeiro mundano, um homem do mundo. Gostava de conhecer pessoas do cinema para tomar uma bebida ou almoçar com elas. Em contraste, Truffaut só estava interessado nas pessoas que admirava; qualquer outra pessoa ele não estava interessado em conhecer.
Os escritórios dos 'Cahiers' ficavam na Champs-Elysées, onde também havia muitos escritórios de produtores de cinema e outros cineastas. Depois que o artigo de Truffaut apareceu, Doniol percebeu que quando as pessoas o viam na Avenida, elas mudavam para o lado oposto da rua!
P - É incrível o efeito que o artigo teve. Afinal, Truffaut tinha apenas 22 anos.
R - Com isso, Truffaut se tornou influente. Protegido por Bazin, ele trouxe Rivette para os 'Cahiers' e, aos poucos, outros amigos como eu.
P - Mas não Godard neste momento.
R - Godard veio depois. Em qualquer caso, Godard estava sempre mais à margem. Na verdade, ele e Rohmer sempre estiveram à margem do nosso grupo. Rohmer sem dúvida porque era mais velho; ele era quase de outra geração. O resto de nós “ensinou” uns aos outros, mas nunca “ensinamos” Rohmer.
P - Como você abordou o Bazin?
R - Nós “ensaiamos” ele. Bazin foi muito direto assim, muito aberto. Rohmer, por outro lado, estava mais distante. Ele tinha muitas atividades das quais nunca tínhamos consciência. Estávamos o tempo todo presos no cinema. Éramos um grupo de 3 ou 4 que costumavam ir ao cinema juntos. Rohmer, porém, nunca se juntou a nós; ele ia ao cinema sozinho.
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Jean-Georges Auriol foi o fundador da 'La Revue du Cinéma'', revista que antecedeu à 'Cahiers du Cinéma'. Ele faleceu em Abril de 1950, um ano antes da criação da 'Cahiers'. |
P - E Godard?
R - Godard era um pouco como Rohmer nesse aspecto. Ele era muito reservado, até mesmo reservado. Depois trabalhei muito com ele, mas nunca fomos amigos. Considerando que alguém como Jacques Demy era um amigo. Meus amigos costumavam vir à minha casa para comer ou eu comia com eles.
P - Você leu a entrevista de Godard no Libération (11) ontem? Ele diz que nunca é convidado por seus amigos.
R - Bem, não é totalmente verdade. Houve um período muito intenso na casa dos meus pais, depois que eles voltaram a Paris em 1954 ou 1955 e assumiram a direção de um café chamado 'Le Café de la Comédie', perto do Palais Royale, em frente à Comédie Française no primeiro arrondissement.
Havia um café no andar térreo e meus pais e eu morávamos no andar de cima. Escrevemos o roteiro de 'Le Coup du berger', de Rivette, no primeiro andar deste café à tarde. Escrevemos outros roteiros lá também, como o roteiro do primeiro longa de Rivette, intitulado “Les Quatre Jeudis”, mas nunca foi filmado. Fizemos muitas coisas lá.
Escrevemos nossos comentários; lemos os comentários uns dos outros e corrigimos uns aos outros. Truffaut esteve menos presente porque já estava muito ocupado como jornalista. Minha mãe ficou satisfeita por ter todos esses jovens à sua mesa.
Claude Chabrol costumava estar conosco à tarde, embora já fosse casado e pai. Godard veio algumas vezes. Sua adesão a nós sempre foi devido a circunstâncias inesperadas.
Estaríamos juntos ao meio-dia e eu diria: "Tudo bem, vamos almoçar na minha casa. Jean-Luc, você vem conosco também? "E às vezes ele o fazia. Não era normal com ele, porque ele é uma pessoa incomum. Era três ou quatro vezes Godard e 150 vezes Truffaut e Rivette. Tivemos sorte porque a comida era excelente.
P - Obrigado aos seus pais.
Sim, e continuou mais tarde, também, quando meus pais deixaram Paris e assumiram o comando de uma pousada, a 60 quilômetros de Paris, chamada 'La Croix d'Or'. Nesta área, filmamos cenas para 'Jules et Jim' [Truffaut, 1962] e 'Les Bonnes femmes' [Chabrol, 1960].
Godard também foi lá. Lembro que minha namorada na época confundiu Jean-Luc com o meu pai.
P - Por que ela achou que ele era seu pai?
R - Porque, em 1959, ele sempre usava óculos escuros e invariavelmente tinha uma barba de três dias. Eu a apresentei a Jean-Luc; foi pouco antes dele filmar 'À Bout de Souffle'.
P - Além do restaurante dos seus pais, vocês todos passaram algum tempo em algum dos cafés conhecidos de Montparnasse, como o Select, o Coupole ou o Dôme?
R - Não, não foi para lá que fomos. Passamos um tempo nos cafés ao redor da Place Clichy e da Place Blanche. Havia um café em Pigalle onde Truffaut, Rivette e eu íamos com frequência à noite. Não me lembro do nome.
Não passamos muito tempo em Montparnasse, exceto no Studio Montparnasse. E passamos muito tempo na Champs Elysées por causa dos cinemas e por causa dos 'Cahiers'. Nos Champs Elysées, quando queríamos beber alguma coisa, íamos muitas vezes ao Deauville porque tinha a vantagem na hora de ser um pouco mais barato que os outros cafés.
Truffaut e eu também frequentávamos um café perto do jornal 'France-Soir'; este café era conhecido por ficar aberto a noite toda; nunca fechou. Era frequentado sobretudo por jornalistas; às vezes, depois de um filme, Truffaut gostava de ir lá. E ocasionalmente eu me juntava a ele para beber uma cerveja e ler o jornal.
P - Em minha pesquisa sobre 'Cahiers', notei que muitos de seus críticos adotaram pseudônimos: por exemplo, Maurice Schérer para Rohmer, Hans Lucas para Godard e Robert Lachenay, eu acho, para Truffaut. Robert Lachenay era seu amigo, mas acho que ele nunca escreveu um artigo. Bazin usou Florent Kirsch. Kirsch era o nome de solteira de sua esposa, não era? E Florent era o nome de seu filho?
R - Sim, isso mesmo.
P - Yves Goutte era o pseudônimo de Chabrol?
R - Sim. Goutte era o nome de solteira de sua primeira esposa.
P - No número de Fevereiro de 1963 da 'Cahiers', encontrei uma entrevista com um certo Yves Kovacs. Imagino que esse nome seja outro pseudônimo. Você sabe de quem? Recentemente perguntei a Laszlo Szabo, porque o sobrenome parece húngaro.
Laszlo não sabia, mas me contou sobre o nome Laszlo Kovacs, que é o nome de Belmondo em 'À Double tour' [1959]. Chabrol deu um nome húngaro a Belmondo em homenagem à presença de Laszlo. Aparentemente, Laszlo Szabo em húngaro é o equivalente em inglês a John Smith ou Jean Dupont em francês.
E Godard usou o mesmo nome como pseudônimo de Belmondo em 'À Bout de souffle'. Você também adotou um pseudônimo?
R - Sim, mas não com muita frequência. Acho que só usei em 'Arts'. O meu era Louis Chabert, porque meu nome é Charles Louis Bitsch. Louis Chabert contém todas as letras de Charles Louis Bitsch.
P - Por que vocês todos tiveram essa queda por pseudônimos? É algo que na sua opinião vem do período da Ocupação, quando era bastante comum assumir outro nome?
R - Não acho que tenha relação com a Ocupação. Acho que tem mais a ver com literatura, onde um bom número de autores usou pseudônimos. E então, é claro, havia uma razão mais simples e mais concreta. Não queríamos dar a impressão de que o Cahiers foi escrito por apenas 3 pessoas; se todos nós tivéssemos pseudônimos, em vez de sermos 3, seríamos 6.
E para alguém como Truffaut, adotar um pseudônimo também foi uma forma de exercitar um estilo diferente. Seu estilo como Truffaut não é o mesmo de quando escreveu sob o nome de Robert Lachenay ou Robert de Montferrand. Foi um exercício estilístico.
P - Você começou a escrever para a 'Arts' em 1959.
R - Estive em Cannes como jornalista em 1958 e 1959, e em 1959 estive lá pelas 'Arts'.
P - E em 1958 você estava no Cannes para 'Cahier's onde você e Bazin fizeram uma entrevista com Orson Welles que foi publicada em Junho de 1958. Foi Truffaut quem te convidou para entrar na 'Arts'?
R - Sim, claro. Aos poucos, o editor-chefe da 'Arts' deu-lhe carta branca na página de cinema.
P - Você costuma ir do escritório da 'Cahiers', na Champs, ao escritório de 'Arts' do Faubourg St. Honoré?
R - Sim, costumamos ir de um escritório para o outro.
P - Você pode descrever o clima do dia a dia na 'Cahiers' nos anos 1950, quando Bazin e Doniol comandavam as coisas?
R - Eles se deram bem, embora quase todos os colaboradores 'Cahiers' tenham sido apresentados por Truffaut. Houve alguns que vieram do lado de Doniol, como Philippe Demonsablon, e houve um ou dois que Bazin trouxe, como, por exemplo, acho que Fereydoun Hoveyda. Mas a maioria foi recrutada por Truffaut.
Bazin era muito mais respeitado do que Doniol. Eu gostava muito de Doniol, mas meu prazer em falar com Bazin era muito maior, porque era infinitamente mais gratificante conversar com Bazin. Com Doniol, a conversa se restringia a assuntos triviais.
O desequilíbrio em 'Cahiers' foi compensado pelo fato de Doniol estar muito mais presente do que Bazin. Bazin neste período estava muito ocupado porque escrevia para vários jornais e então sua saúde estava muito frágil. Ele estava menos presente na 'Cahiers' do que Doniol e não vinha com tanta frequência. Doniol estava muito mais presente.
Consequentemente, teve um papel maior na revista, evidente, por exemplo, na diagramação e na escolha dos artigos. A presença de Doniol pode até ser percebida no índice da revista. Foi Doniol, por exemplo, quem decidiu fazer um especial sobre mulheres no cinema.
P - Imagino que os pequenos desenhos da revista daquela época também foram ideia do Doniol. Estou certo?
R - Sim, é verdade. Todas essas pessoas escreveram para 'Cahiers' quase por acidente. Eles não queriam ser críticos, mas diretores. Enquanto esperavam para fazer filmes, eles escreveram algumas críticas. Além disso, foi Truffaut ou Rivette que disse: “A única crítica real é fazer um filme”.
P - Sim, o único verdadeiro crítico entre vocês foi o Bazin. Todos os outros eram cineastas em formação ou profissionais de outra disciplina, como Georges Sadoul, que era historiador. Entre 1953 e 1959, você escreveu diversos artigos para a 'Cahiers', incluindo resenhas, biofilmegrafias, entrevistas e artigos sobre um determinado tema. Há algum de que você esteja particularmente orgulhoso?
R - Admirei muito Truffaut, Rivette e Rohmer pelos seus escritos, pela sua capacidade de teorizar. Eu preferia escrever comentários. Falei de algo concreto, que se materializou perfeitamente pelas imagens que estavam em uma lata de metal.
Falar de cinema do ponto de vista teórico sempre me incomodava e, por isso, raramente o fazia. O que mais gostei de fazer foram as entrevistas; são minha melhor lembrança desse período, por exemplo, as duas entrevistas que Bazin e eu fizemos com Orson Welles. Foram momentos extraordinários: foi a forma como Welles nos recebeu, o que ele disse antes, o que disse depois.
Eu vi Welles uma vez em Cannes e depois nos encontramos novamente em Bruxelas, onde houve uma exibição de 'Touch of Evil' [1958]. Ele saiu do cinema e assim que me viu chamou meu nome “Oh, C H A R L E S” com sua voz estrondosa. Nós nos divertimos muito juntos. Foi realmente bom. Foram momentos que ficaram comigo, mesmo que não seja evidente na transcrição da própria entrevista.
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Jacques Rivette foi um dos principais nomes da 'Gazette du Cinéma,' da 'Cahiers du Cinéma' e da Nouvelle Vague. |
P - Você também fez entrevistas com Anthony Mann, Vincent Minnelli, Nicholas Ray e Richard Brooks.
R - Em nosso grupo, além de Doniol, que falava inglês, eu era o único que realmente conseguia conversar em inglês. Meu inglês é puramente escolar, mas eu o melhorei assistindo a filmes em sua língua original. Então, fui a vítima designada para dar entrevistas em inglês.
Eu me diverti muito com Nicholas Ray, mas ele não foi fácil. A primeira entrevista de 'Cahiers' com Ray foi feita em duas sessões, porque na primeira ele falou tão pouco. Isso dificultou e, no final da entrevista, concordamos em nos ver novamente. Eu não sei se ele estava tendo problemas em sua vida pessoal.
Na próxima vez, tudo correu bem. Nós nos víamos regularmente, mesmo sem uma entrevista, e frequentemente nos falávamos. A última vez que o vi foi na Suécia. Acontece que ambos estávamos em Estocolmo ao mesmo tempo.
P - Um de seus outros colegas 'Cahiers', Fereydoun Hoveyda, escreveu dois artigos famosos sobre Nicholas Ray (“À propos de Nicholas Ray” e “Tâches de soleil”). O que aconteceu com Hoveyda?
R - Ele mora nos EUA desde 1960. Por um tempo, ele trabalhou na política na ONU. [Ele faleceu no final de 2006. Ed.].
P - Você me disse que nunca foi muito próximo de Godard. Como é que fizeste vários filmes com ele, mas, pelo que eu sei, nenhum com o Truffaut, que era um grande amigo?
R - Você está mais ou menos certo. Não fiz muito com o Truffaut. Fiz o filme de esboço de 'L'Amour à vingt ans' (1962), “Antoine et Colette”. Eu era o assistente de câmera de Raoul Coutard naquele filme. Em 'Les Quatre centavos golpes' (The 400 Blows, 1959), Jacques Demy e eu temos pequenos papéis como policiais que prendem Jean-Pierre Léaud [Antoine Doniel]. Mas é verdade que não fiz muito com Truffaut.
Eu não sei porque aconteceu assim. Truffaut era alguém com quem continuava a ver regularmente. Eu passava por seu escritório no 'Films du Carosse'. Nós chamávamos um ao outro; ocasionalmente comíamos juntos em um restaurante. Dissemos a cada um o que estava acontecendo em nossas vidas. Conversamos um pouco sobre o que estávamos lendo ou sobre os filmes que havíamos visto.
Por que não trabalhei mais com ele? Sem dúvida, em parte por causa de nossos vários compromissos. Naquela época, eu trabalhava mais ou menos o ano todo para Godard. Eu trabalharia oito meses para ele e depois tiraria uma folga.
De qualquer forma, trabalhar como assistente de direção levaria cerca de cinco ou seis meses, desde os preparativos até o final da filmagem. Então eu tive que estar disponível durante todo esse tempo.
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'Arts-Spectacles' foi outra publicação com a qual Truffaut e Godard colaboraram na década de 1950. |
MULHERES NA 'CAHIERS DU CINÉMA' NA DÉCADA DE 1950
P - Graças às suas observações anteriores, posso imaginar melhor a atmosfera no escritório da 'Cahiers'. Mas uma coisa que ainda me surpreende é a quase total ausência de mulheres naquele meio. Digo "quase" porque Lotte Eisner ocasionalmente escrevia artigos para 'Cahiers'.
Durante a década de 1950, vemos os nomes de muito poucas mulheres nas páginas dos 'Cahiers'. Houve Jacqueline Audry, Nicole Védrès e Agnès Varda. Sei que havia algumas assistentes no escritório, como a esposa de Doniol, Lydie, mas o trabalho delas era um pouco como o seu como assistente de direção: invisível.
É bem sabido que depois da guerra houve um grupo de jovens que eram cinéfilos sérios. Como mulher, acho um pouco difícil imaginar que não havia poucas mulheres da sua idade que tivessem o mesmo desejo pelo cinema. O que você acha?
R - Eu realmente não tenho uma resposta para o porquê de não haver nenhuma jovem que quisesse fazer filmes. Em todo caso, havia uma, mas talvez você nunca tenha ouvido falar dela: Annie Tresgot.
Era uma jovem que víamos com frequência na 'Cinémathèque', na primeira fila. Estávamos sentados na primeira fila e ela também. Mas nunca falamos com ela; dizíamos “Olá”, mas nada mais. É verdade que em nosso grupo as mulheres estavam ausentes.
Sem dúvida, parte disso se devia à nossa modéstia, uma certa reserva; isso nunca foi algo sobre o qual falamos. Não contamos um ao outro sobre nossas aventuras juvenis; mais ou menos suspeitamos de certas coisas, mas nunca falamos sobre elas. Era um tabu.
E em 'Cahiers', mesmo que seja verdade que nos colóquios as mulheres estivessem completamente ausentes, havia no entanto duas mulheres que eram a espinha dorsal do empreendimento, uma cujo nome tenho vergonha de dizer que esqueci, mas que era a secretária e atendia ao telefone e cuidava das contas.
Depois, havia a esposa de Doniol, Lydie, que a princípio aparecia de vez em quando e que, aos poucos, assumiu a administração diária da revista por vários anos. Supervisionava as assinaturas e a administração diária que cuidava com grande competência, além de muita gentileza e humor, o que tornava particularmente agradável vê-la no escritório da 'Cahiers', que era uma grande sala.
P - Então, exceto por Annie Tresgot e digamos Agnès Varda, mas ela não era cinéfila nos anos 1950, não havia outras mulheres?
É verdade que Varda veio de outro caminho - ou seja, teatro, fotografia - e por isso só entramos em contato com ela mais tarde, depois de ela ter feito vários filmes, quando se tornou esposa de Jacques Demy. Demy era alguém que conhecíamos há muito tempo, especialmente eu.
Eu o conhecia melhor do que os outros porque havíamos estudado juntos na 'Ecole Louis Lumière'. Ele estava terminando seus estudos lá assim que eu comecei, mas nós nos víamos ocasionalmente. Costumávamos relembrar e brincar sobre nossos professores da Escola Lumière.
SOBRE SER DIRETOR ASSISTENTE E CÂMERA
P - Você estudou para ser diretor de fotografia e foi o cameraman no 'Paris nous appartient', de Rivette (1960). Por que você decidiu trabalhar como assistente de direção ao invés de diretor de fotografia, já que foi isso que você estudou?
R - Não sei, talvez me enganasse, mas, como já disse, queria um trabalho que pudesse praticar caso não pudesse dirigir os meus próprios filmes. Então, aprendi a fazer um filme e trabalhei para o Jacques Rivette para ajudá-lo, porque trabalhava de graça.
Eu também fotografei muito com Jean-Pierre Melville e Chabrol. Em 'Le Doulos', de Melville [1962], comecei como assistente de direção, mas terminei como cinegrafista. Em 'Deux Hommes dans Manhattan' [1959], muitas vezes enquadrei as fotos.
Na época em que trabalhava para o produtor Georges de Beauregard, frequentemente fazia outras filmagens; no final da filmagem, haveria cenas ou tomadas para adicionar. Para Landru [1963], por exemplo, filmei uma cena adicional em um estúdio. Eu também fiz todas as inserções de 'Le Doulos'.
P - Com Chabrol, você também trabalhou em 'Le Beau Serge' (1958) e 'Les Bonnes Femmes'. Você pode descrever sua contribuição para esses dois filmes?
R - Fui assistente de direção nesses dois filmes…
É verdade que minha ideia sempre foi dirigir meus próprios filmes, mas eu não tinha certeza se conseguiria. Talvez eu tivesse feito melhor se continuasse como diretor de fotografia. Eu também filmei 'Véronique et son cancre', de Rohmer (1958).
Aceitei trabalhar como assistente de direção por ser considerado o trabalho mais próximo do cineasta, enquanto Truffaut, Chabrol e os demais começavam a fazer filmes sem fazer muitas perguntas.
Eu estava mais tímido e menos seguro de mim; Eu queria aprender. Lembro que Chabrol costumava dizer: “Você pode aprender tudo o que precisa para fazer um filme em 48 horas”. Eu não concordo totalmente com essa ideia. Achei que você precisava de muito mais preparação do que isso.
É verdade que a 'Cinémathèque' de Langlois era uma boa escola. Mas, ao mesmo tempo, também achava que trabalhar em um set era um excelente aprendizado. Em retrospecto, talvez tudo isso pareça um pouco confuso, até contraditório. Mas é verdade que, como assistente de direção, tive muito menos satisfação com meu trabalho do que nos filmes em que fui cinegrafista.
O trabalho de um diretor assistente é de organização e mediação: uma equipe de filmagem se comunica no set com o diretor por meio do diretor assistente. A base do trabalho de um diretor assistente é organizacional; esses detalhes organizacionais são rapidamente esquecidos, mas, mesmo assim, são fundamentais para o filme final.
Também é importante notar que para cada diretor, um assistente deve se adaptar de acordo. Existem alguns diretores que exigem que seus assistentes estejam muito presentes no set, enquanto outros diretores preferem que o assistente seja o mais invisível possível. E, no meio, você tem todos os níveis intermediários. E, ao final, o espectador não vê essa obra no filme.
No entanto, o trabalho de um diretor assistente é muito preciso e até indispensável. Mas é pouco falado, assim como, por exemplo, a contribuição dos punhos. Naquela época, eu conhecia muitos homens que eram verdadeiros gênios com máquinas e outros que eram muito medíocres. Assim como existem diretores inspirados e outros que são meros contratados, o mesmo acontece com o assistente.
P - Ao escolher trabalhar como assistente de direção por achar que seria o caminho mais direto para se tornar cineasta, você estava pensando na carreira de alguém como Robert Aldrich?
R - Não, aliás eu percebi que nos Estados Unidos que embora o Aldrich e um ou dois outros tivessem conseguido se tornar diretores depois de trabalharem como Assistentes de Direção, em geral não era assim para se tornar um diretor.
O diretor assistente é alguém que provavelmente acabaria como produtor. Nos EUA, outros caminhos podem levar a se tornar um diretor, como ser roteirista, editor ou diretor de fotografia. Mas na França a tradição era que, para se tornar um diretor, você tinha que primeiro ser um Assistente de Direção.
P - Em quem você estava pensando? Jacques Becker?
R - Sim, estava pensando no Jacques Becker. Meu desejo era me tornar o equivalente não de Jean Renoir ou Bresson ou mesmo Godard, mas um segundo Jacques Becker. Gostei da trajetória dele e, o que é mais, achei que combinava comigo. Senti-me muito próximo da sua forma de filmar e dos seus personagens, como nos filmes 'Rendez-vous de juillet' [1949] e 'Édouard et Caroline' [1951], etc.
Eram filmes que me falavam de forma muito direta; em relação ao que eu queria fazer, pareciam exemplares. Então, embora eu admirasse muitos filmes de Renoir ou Ophüls, eu sabia que nunca poderia fazer o que eles fizeram. Mas com Jacques Becker, tive a impressão de que poderia seguir seus passos.
P - Existem outros diretores franceses cujo caminho foi semelhante ao de Becker?
R - Sim, houve outros, como o Louis Daquin, que começou como auxiliar. Há outros também, mas no momento não consigo lembrar seus nomes. Oh, sim, há também o exemplo de Jacques Tourneur, que acredito que também começou como assistente.
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O Festival de Cinema Maldito de Biarritz de 1949 reuniu vários dos futuros membros da 'Cahiers' e da Nouvelle Vague, incluindo André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze, Eric Rohmer e Pierre Kast. |
P - Jacques Tourneur é um pouco diferente, não é, porque era filho de um diretor conhecido.
R - É verdade, mas acho que ele começou a trabalhar como assistente de direção não para o pai, mas para outros diretores. E talvez neste grupo possamos incluir René Clément que fez seu primeiro filme com Jacques Tati.
Existem alguns diretores franceses que começaram como diretores assistentes. Em qualquer caso, meu modelo era Becker, embora Becker não tivesse estudado em uma escola de cinema.
P - Ao ler sua resenha de uma resenha de um filme americano chamado 'The Big Combo' (1955), fiquei impressionado com o fato de você usar a resenha não para falar do diretor Joseph Lewis, mas do diretor de fotografia John Alton .
Você diz que o filme, embora decepcionante, não é “sem interesse, graças a John Alton, um dos maiores, senão o maior diretor de fotografia de Hollywood”.
Você prossegue, observando que a lista de filmes americanos que devem tanto ao seu diretor de fotografia quanto ao seu diretor é longa. No seu papel de crítico, você acha que seus estudos em fotografia lhe deram uma visão particular sobre a contribuição dos diretores de fotografia?
R - Sim, claro. Aprendi o básico de como fazer imagens no filmstock, para fazer uma imagem padrão. Mais tarde, você precisa aprender a esquecer o que aprendeu, a fim de fazer as coisas de forma diferente, mas em qualquer caso, essa educação influenciou a maneira como olhei para um filme; Eu descobri ou tentei descobrir como uma cena era iluminada e de que maneira um cinegrafista poderia deixar uma marca estilística. Quais são os segredos? Quais são os truques?
Meu interesse pela imagem nunca diminuiu; sempre foi muito maior, por exemplo, do que no som. É verdade que no cinema o som é muitas vezes visto como o parente pobre e que tudo se sacrifica pela imagem.
P - Os outros da 'Cahiers' foram tão sensíveis à contribuição do cineasta?
R - Não creio que tenha sido particularmente por minha causa, mas todos fomos sensíveis à contribuição do cineasta. Deixando Godard e Coutard de lado, era óbvio que um diretor encontrou em um de seus principais colaboradores uma espécie de meio para expressar suas ideias no cinema.
Ocasionalmente, há encontros felizes que quase levam a casamentos, e nesses casos é interessante seguir a trajetória do diretor de fotografia. Percebemos que havia um bom número de Assistentes de Direção desse tipo - Joe LaShelle, MacDonald, John Alton, Robert Burks e, na França, Nicolas Hayer, Claude Renoir e Henri Decaë, só para falar desses dois países.
Então, havia um certo número de cinegrafistas cujas carreiras seguíamos tão de perto quanto certos cineastas, assim como seguíamos a carreira de certos atores, e iríamos ver um filme medíocre só porque James Stewart estava nele.
PARIS NOS PERTENCE
P - Em 1958, você começou a trabalhar no primeiro longa de Rivette, 'Paris nous appartient'. Ao que tudo indica, foi uma filmagem inesquecível. Você pode dizer algo sobre isso?
R - Depois de algumas semanas de filmagem, Rivette, Jean Gruault, que havia escrito o roteiro, e eu avaliamos a situação. Dado o fato de que tínhamos uma equipe muito pequena, estávamos filmando muito rapidamente. E depois de cerca de duas semanas de filmagem, percebemos que tínhamos 15 minutos de filme e que isso representava nem mesmo dez por cento do roteiro conforme estava escrito.
Então, eu disse ao Jacques que não poderíamos continuar assim. Já fazer um filme sem dinheiro é complicado. Fazer um filme de 90 minutos é muito difícil. Fazer um filme de 2 horas é ainda mais difícil, mas fazer um filme de 5 horas sem nenhum dinheiro, bom, eu não sabia como iríamos fazer até o fim.
Precisaríamos de quinze ou vinte semanas de filmagem e Rivette não seria capaz de manter a mesma equipe por tanto tempo sem pagá-los. E quando digo sem pagar, quero dizer sem pagar!
Começamos a trabalhar pela manhã e terminaríamos à noite. Na hora do almoço, íamos todos a um restaurante e cada um era responsável por pagar a própria refeição, porque não havia dinheiro.Todos doamos o nosso tempo, mas foi ainda mais do que trabalho voluntário, pois custava a todos vir trabalhar. Gruault e eu dissemos a Rivette que não poderíamos continuar assim.
Houve uma grande briga porque Rivette realmente não queria imaginar cortar nada de seu roteiro. Então, ao final de três semanas, a filmagem foi interrompida porque não havia mais filmstock. Gruault e Rivette aproveitaram essa pausa para tentar, no entanto, reduzir as dimensões do filme. Acho que a versão final do filme tem 2 horas e 20 minutos.
Inicialmente, Rivette pediu a todos que estivessem disponíveis por 6 ou 8 semanas, mas na realidade as filmagens se estenderam por mais de um ano.
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Imagens de Truffaut e Godard sobre cena de 'Bande à Part' (1964). |
SOBRE O TRABALHO COM JEAN-LUC
P - Fale-me sobre o seu trabalho com Godard. Originalmente você pretendia trabalhar no À bout de souffle. O que aconteceu?
R - Eu não trabalhei em À bout de souffle porque ainda estava filmando Paris nous appartient.
P - Você também não trabalhou em Le Petit soldat (1963) ou Une Femme est une femme (1961)?
R - Durante esse período, eu estava trabalhando em 'À double tour' ou 'Les Bonnes Femmes' de Chabrol e também em 'Deux Hommes dans Manhattan' de Melville.
E então tive um problema de saúde que me obrigou a parar de trabalhar por um ano. Comecei a trabalhar novamente em 1962; foi em 'Vivre sa vie: film en douze tableaux', que foi meu primeiro filme com Jean-Luc. Eu filmei uma cena.
Não me lembro mais por quê, mas Coutard não conseguiu terminar o filme. Então, eu era o assistente de Coutard no filme com um sujeito chamado Georges Liron. Perto do final do filme, Coutard deixou o set com Liron e eu assumi.
Como cinegrafista, Godard me pediu para fazer coisas completamente contrárias aos métodos convencionais. Filmei a cena da conversa na Champs-Elysées entre Sady Rebot [Raoul] e Anna Karina [Nana]. Houve uma espécie de tomada de viagem, e Godard me disse:
"Você vê que deve cortar a viagem até lá." Mas eu disse a ele que isso não funcionaria porque não veríamos nada de Sady Rebot, apenas seu pescoço. E Godard respondeu: "Isso é exatamente o que eu quero."
Fui levado a fazer coisas não da maneira habitual. E eu tinha um bom motivo para me preocupar porque na época não havia monitores de vídeo. Portanto, só na exibição o diretor perceberia se o filme foi um fracasso ou um sucesso.
Com Jean-Luc, tive muitos sustos, porque se suas ideias eram muito precisas sobre o que ele queria, ele nem sempre era muito claro em suas explicações. Como resultado, geralmente ficava muito ansioso durante as exibições.
P - Quando foi a filmagem de Vivre sa vie?
R - Deve ter sido em março. Eu me lembro que estava bem frio e era quase o começo do ano.
P - Você trabalhou em 'Les Carabiniers' em dezembro de 1962 e janeiro de 1963, e o filme foi lançado naquela primavera, não muito depois do lançamento de 'Le Petit soldat', em janeiro de 1963. Ambos foram fracassos comerciais.
R - O que é extraordinário é que no set de 'Les Carabiniers' a tripulação estava em um estado de entusiasmo incrível, o que é raro.
Todos pensávamos que o filme iria entrar para os livros de história. Era como se tivéssemos trabalhado em 'Encouraçado Potemkin'. Os atores talvez estivessem um pouco menos entusiasmados porque eram todos desconhecidos e nunca haviam trabalhado com Godard antes.
Mas a equipe era composta por várias pessoas que já haviam trabalhado com Godard antes, e todos nós pensamos que o filme era muito especial e que seria um grande sucesso.
P - Por que isso?
R - Em parte pelo assunto, mas também pela forma como foi filmado. Foi filmado silenciosamente com uma câmera portátil, uma Caméflex. [20]
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Truffaut, com 18 anos, e Godard, com 19 anos, na primeiro fotografia dos dois, em 1950. |
P - E Godard explicou que queria imitar o visual do documentário da guerra?
R - Sim, isso também. O tratamento especial da imagem e a guerra completamente irreal. Em suma, tínhamos a ideia de que estávamos fazendo um filme importante. E praticamente a mesma equipe, ou pelo menos uma boa parte dela, reuniu-se alguns meses depois na Itália para 'Le Mépris' [1963].
'Les Carabiniers' foi lançado enquanto estávamos filmando 'Le Mépris'. Esperávamos saber de Paris a quantidade de ingressos vendidos. No primeiro dia de seu lançamento, recebemos uma ligação em Roma. Coutard, eu e mais alguns esperamos pela notícia, e Jean-Luc nos disse que o filme foi lançado na Champs-Elysées e às 14h havia 12 espectadores e, no final, apenas 3.
Ficamos muito tristes, porque não conseguíamos entender. Além disso, foi uma filmagem difícil. Filmamos nos arredores de Paris e o tempo estava muito frio. Houve várias aventuras no set porque tínhamos tão pouco dinheiro. De qualquer forma, passei muito tempo com Godard e trabalhei muito com ele. Mas, ao mesmo tempo, ele não costumava vir à minha casa para jantar.
Ele não era um amigo; ele era alguém com quem trabalhei e com quem me dei muito bem. Acho que ele gostou de trabalhar comigo porque fui capaz de controlar seu tipo de loucura no set. A tripulação precisa ter algumas certezas de vez em quando. Ele precisa saber o que vamos fazer, não amanhã, mas em meia hora.
Isso é o mínimo para uma equipe de filmagem. Mas com Godard, muitas vezes era uma aventura maluca. E de alguma forma consegui desempenhar um papel central entre ele e a equipe. Consegui entender mais ou menos o que ele queria colocar na frente da câmera, sem nenhuma explicação precisa dele. Ele raramente era explícito.
Ele falou bastante com Coutard porque era uma necessidade, mas é seguro dizer que ele não era um diretor que deixava as pessoas à vontade. Depois de desestabilizar a equipe e os atores, ele precisava de alguém atrás dele para acalmar a todos. Você poderia dizer que eu era uma enfermeira ambulatorial no set.
P - Imagino que a falta de roteiro de Godard tenha lhe causado muitas dores de cabeça.
R - Claro. Às vezes, ele me pedia algo, e simplesmente não era possível. Se ele me pedisse um elefante em meia hora, eu não seria capaz de inventar um. Mas ele me deu uma certa confiança para renunciar ao impossível, para renunciar sem dar grande importância. Nesse caso faríamos outra coisa e de maneira diferente.
Mas é verdade que a maior dificuldade no trabalho sempre foi a falta de uma base efetiva de trabalho que é sempre necessária com os atores, os acessórios, o cenário, os figurinos.
É verdade que a ausência de um roteiro complicava a vida de todos, a começar pelos atores, a quem dava um pedaço de papel logo antes de filmar, dizendo: “Aqui está o seu texto”. Dito isso, todos os outros diretores com quem colaborei trabalharam de forma diferente, mas não era necessariamente mais interessante.
P - A mãe de Godard, Odile Monod, morreu em 1954. Todos vocês em Cahiers sabiam disso?
R - Não. Em todo caso, com Godard, sempre tive dificuldade em imaginar que ele tinha pai, mãe ou irmã. Para mim, ele era realmente um extraterrestre. Ele era alguém de outro planeta.
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Chabrol, JP Melvile e JL Godard: Três dos principais nomes que promoveram a renovação do cinema francês e mundial a partir dos anos 1950. |
P - O que você diz me lembra uma entrevista que Godard fez com Alan Riding no 'The New York Times', onde Godard se autodenomina um extraterrestre que pousou na Terra apenas para fazer imagens.
R - Bem, essa é a impressão que seus filmes recentes me dão; eles vêm de outro lugar. Eles vêm de outra dimensão, outro planeta. É verdade que isso não facilita entendê-los. É como ver um filme japonês sem legendas e sem imagens. Você ouve japonês, mas não entende nada.
P - Você me descreveu Godard como alguém misterioso: você disse que ele tinha uma vida secreta. Você pode expandir isso?
Eu não sei o que dizer. É verdade que havia momentos em que ele parava no 'Cahiers du Cinéma'. Ele ficaria lá por duas ou três horas, por uma tarde inteira. Às vezes íamos todos juntos a uma exibição.
Mas também houve grandes períodos de tempo em que não sabíamos onde Godard estava, porque não tivemos o reflexo quando o vimos de dizer: "Onde você esteve?" Ou "O que você fez ontem à noite?"
P - Você tem ideia de por que Godard às vezes suprimia os créditos? Deve ter parecido surpreendente na época.
R - Sim, é surpreendente, mas muitas vezes ele mantinha nos créditos certos elementos quando podia brincar com eles. Eu imagino que ele suprimiu tudo o que ele pensou que iria estragar suas fotos.
Em uma pintura, você tem a assinatura do pintor, mas ele não nota onde comprou seus tubos de tinta. Não acho que ele os eliminou porque não estimava o trabalho de seus colaboradores.
Acho que ele estava preocupado em remover tudo, exceto o essencial. Isso é tudo. De qualquer forma, nunca fiz essa pergunta a ele. Além disso, é importante lembrar que não existem regras estabelecidas, apenas convenções. Digamos que ele se libertou de uma obrigação cinematográfica.
Em última análise, ninguém conseguiu fazer isso antes dele, exceto de certa forma Sacha Guitry, que falou seus créditos ao invés de transcrevê-los em texto. Foi Sacha Guitry quem na trilha sonora costumava dizer que o Sr. W filmou, e agradeço a Madame Y por interpretar o papel de ...
P - Como Godard faz nos créditos de 'Le Mépris'.
R - Sim, exatamente. Godard tinha uma grande admiração por Guitry. É verdade que fora de Guitry, que transgrediu a tradição dos créditos cinematográficos, houve Godard que os maltratou.
P - Você mencionou seu trabalho com De Beauregard. O que você fez com ele?
R - Georges de Beauregard era produtor e havia produzido alguns filmes antes de 'Breathless'. Uma das razões pelas quais de Beauregard produziu 'À Bout de souffle' foi porque ele estava à beira da falência.
Ele não tinha mais dinheiro; ele não tinha nada. Aconteceu com este jovem cineasta que propôs fazer um filme por uma quantia tão ridiculamente pequena que Beauregard aceitou porque, raspando o barril, conseguiu encontrar essa quantia.
Para de Beauregard, talvez fosse a última chance de não ir à falência. Eu não estava nas fotos, mas ouvi rumores e foi dramático. Não sei o que aconteceu, mas quando de Beauregard viu os juncos, ficou completamente em pânico; ele pensou que tudo estava acabado para ele.
Quando conheceu Godard, ele já estava à beira de um precipício e pensou que Godard o havia empurrado para a beira do precipício. Mas seu fim acabou sendo um novo começo, um renascimento. Com o sucesso de 'À bout de souffle', ele conseguiu reviver suas produções.
Depois fez filmes com Demy, Rivette, Melville e Chabrol, e essas foram as pessoas com quem trabalhei ou que conheci. E então ele também fez vários filmes com Godard.
Durante um período de minha vida profissional, quase nunca saí do escritório de Beauregard porque estava trabalhando com Godard em um filme ou estava trabalhando com Melville, etc.
Passei muito tempo com de Beauregard e o conhecia e é por isso que ele produziu meus dois filmes de esboço. Ele se ofereceu para me ajudar na produção do meu primeiro filme.
SOBRE UM FILME NUNCA FEITO: O “POUR LUCRECE” DE GODARD
P - Você mencionou na semana passada que trabalhou não só nos filmes que Godard fez, mas também nos filmes que Godard não fez. Há uma cena em JLG / JLG - autoportrait de décembre (1995) em que o inspetor de cinema que faz a contagem dos filmes do diretor diz a ele que as secretárias esqueceram o mais importante: “todos os filmes que você não fez”. Você poderia elaborar sobre este tópico?
B - Bem, há um em particular. Muitos projetos permaneceram em estado embrionário. Ele tinha uma ideia e falava sobre ela por alguns dias, mas não foi adiante. Mas havia o projeto baseado na peça de Giraudoux, Pour Lucrèce, onde a produção estava completa.
P - Quando foi isso?
R - Devo verificar minhas anotações, mas acho que foi antes das filmagens de Les Carabiniers, que foi filmado em dezembro de 1962 e janeiro de 1963.
P - Então teria sido entre Vivre sa vie e Les Carabiniers.
R - Sim, parece certo. Para “Pour Lucrèce”, teve Anna Karina, Sami Frey e um terceiro ator - me pergunto se não foi o trio de Bande à part, Claude Brasseur - e eu fiz meu trabalho como assistente. Com Godard, procurei um local onde pudéssemos filmar; ele queria muito filmar na propriedade de Louise de Vilmorin.
Nós dois fomos visitá-la e ela deu sua permissão. Depois, passei um tempo na casa dela para cuidar de um certo número de detalhes para a filmagem. Preparamos toda a produção e contratamos equipe e atores. No primeiro dia de filmagem, fomos instalar-nos no jardim da sua propriedade.
Godard queria que os atores recitassem o texto da peça; esse foi o nosso roteiro. Godard me disse que a cena aconteceria na sala de estar, e eu sabia que quando ele disse que aconteceria na sala de estar, eu deveria estar preparado para filmar na cozinha ou no jardim. Nada jamais foi gravado em pedra com ele.
Mesmo assim, isso me permitiu preparar um plano de trabalho para o filme. Então, estávamos todos juntos e Godard decidiu, para a primeira cena, usar uma longa tomada de viagem. Enquanto preparávamos os trilhos para a viagem, trouxemos a câmera para o set e começou a chover.
Muito rapidamente, o punho cobriu a câmera com plástico para que ela não se molhasse e todos se amontoassem na casa de Louise de Vilmorin para se abrigar. Esperamos meia hora, uma hora, duas horas, e ainda estava chovendo. E ao final de várias horas, Jean-Luc se virou para mim e disse:
"Tudo bem, Charles, diga à equipe para dobrar tudo." Então eu disse a ele: “Espere, pode parar”. E ele respondeu: “Não, dobre o material.” Eu respondi: “Mas e amanhã?” E ele respondeu: “Dobre o material porque, de qualquer forma, vamos parar o filme”. No começo achei que ele estava brincando.
Mas ele disse: “Estamos interrompendo o filme para sempre”. A essa altura, eu já sabia que não deveria me surpreender com nada. Mas finalmente eu disse à equipe que esse primeiro dia de filmagem foi o único dia de filmagem de “Pour Lucrèce”. O primeiro dia de filmagem em que nada foi filmado. Nada foi filmado.
Foi assim que acabou e custou uma fortuna a Jean-Luc porque ele teve que reembolsar a produtora: todos os contratos para os atores e a equipe já haviam sido assinados. Estava escrito nos contratos que você tinha que pagar, mesmo que o filme não fosse feito.
Já houve despesas durante a preparação. E tudo que a empresa de Godard, Anouchka Films, foi obrigada a pagar. Custou-lhe muito. Não sei se foi uma decisão cuidadosamente pensada da parte dele.
P - Na sua opinião, por que ele fez isso?
De repente, ele não queria mais fazer o filme. Por que ele não queria mais? Acho que talvez uma das razões pelas quais ele gostava de mim e de nós podermos trabalhar juntos era porque eu tinha uma regra de nunca perguntar a ele sobre seus motivos.
Eu só perguntaria a ele: "O que você quer fazer?" E ele dizia: “Eu quero fazer isso”, e eu dizia: “Tudo bem”. Nunca "Por quê?" Nunca perguntei por que ou como.
Eu esperaria e tentaria fazer tantas coisas ao longo do caminho para que ele pudesse fazer o que quisesse. Por que ele não queria mais fazer o filme - isso não era problema meu e nunca perguntei a ele. Então, eu não sei por que ele cancelou. Mas imagino que tenha feito isso porque em determinado momento tudo ficou pesado demais para ele e ele não quis mais continuar.
É um caso extremo, mas havia muitas vezes em que nos encontrávamos de manhã no set e ele me dizia: “Pode voltar para o carro; todos podem ir para casa. Hoje não estamos filmando porque não tenho ideias. ”
No caso de “Pour Lucrèce”, em vez de nos mandar todos para casa durante o dia, ele nos mandou para casa por um mês, porque 4 semanas de filmagem estavam planejadas.
Também havia outros filmes que não foram feitos, mas só este foi um acontecimento - só com ele algo assim poderia acontecer. Na história do cinema, existem outros filmes que não foram finalizados, geralmente por motivos financeiros.
Ao final de uma semana de filmagem, o produtor declararia falência, e o filme seria interrompido porque não havia mais dinheiro para continuar. Mas esse definitivamente não foi o problema para “Pour Lucrèce”. Todo o financiamento estava em vigor. Os problemas de Godard vieram de outro lugar.
P - Havia um roteiro baseado na peça de Giraudoux?
R - Não, não havia nada escrito além da peça de Giraudoux; a própria peça foi uma ferramenta para a produção do filme. E fiz algumas anotações em um caderno, baseadas na peça. Eu fiz a Jean-Luc um certo número de perguntas sobre o texto, e ele disse "Essa passagem precisa ser cortada ..."
Fiquei feliz quando ele confiou em mim dessa forma porque me ajudou a fazer meu trabalho. Mas ele não tinha nada escrito e, em todo caso, sua ideia para o filme era suprimir os atores e o livro físico para falar o texto, ou seja, para ler a peça. Ele viu isso quase como uma leitura da peça. Ele queria que os atores seguissem o diálogo de Giraudoux, sem fazer nenhuma alteração.
Surpreende-me que Godard quisesse fazer uma peça de uma forma tão teatral. Godard adaptou vários romances e, exceto 'Le Mépris', onde segue bastante de perto o romance da Morávia, suas adaptações, na melhor das hipóteses, podem ser chamadas de livres. Muitas vezes é difícil reconhecer o original na versão de Godard.
O exemplo mais flagrante é, claro, seu 'King Lear' (1987). Uma coisa parece certa: Godard estava interessado no trabalho de Giraudoux. 'Hélas pour moi' é uma adaptação livre de 'Amphitryon 39' de Giraudoux. E em 'Prénom Carmen' (1983), há uma referência explícita à peça de Giraudoux, 'Cela s’appelle l’aurore'.
Sim, é verdade que Godard era muito Giraldician. Provavelmente foi algum tipo de homenagem a Giraudoux da parte dele. Godard tinha o hábito de roubar de todos os lugares frases que ele então transformaria em seu próprio diálogo.
E então, de repente, ele mudou completamente de tática e decidiu filmar um texto de uma certa maneira. Era mais para filmar o texto do que para filmar imagens ou cenas. O livro teve uma grande importância para ele.
SOBRE JEAN-PIERRE MELVILLE
P - Você também mencionou que trabalhou com Melville. Soube que seu estúdio ficava no 13º arrondissement. Você pode me dizer onde?
R - Sim, foi na rue Jenner. Não existe mais porque queimou. Essa rua costumava servir de pano de fundo nos filmes de Melville. Há também uma pequena rua logo atrás de onde ficava o estúdio, uma rua perpendicular à Jenner Street, onde Godard filmou a cena final de Vivre sa vie, onde Anna Karina [Nana] é filmada. Talvez seja a rue des Abondances. O estúdio de Melville ficava bem na esquina. Entre Godard e Melville, passei muito tempo nessa área.
P - Deixe-me ver se consigo encontrar a rue des Abondances no meu mapa aqui ... Não estou vendo.
R - Você sabe que o 13º arrondissement (bairro) passou por grandes mudanças. Precisamos de um mapa antigo de Paris. Espere um minuto. Posso ter um lá em cima ...
P - Você acha que a rua pode ter mudado?
R - Sim, porque havia uma rua da rue Jenner à rue Jeanne d'Arc que não existe mais. Você sabe que Paris não é estática; a cidade evolui ... Aqui, eu encontrei. O nome da rua não é rue des Abondances, mas rue Gustave Mesurier. É aí que Anna morre como Nana em Vivre sa vie. Este mapa foi publicado em 1969. A rua começa na rue Jenner e termina na rue Esquirolle.
P - Godard gostou do 13º arrondissement?
R - Não, não foi isso. Na verdade, Godard gostava de Melville e filmar naquele bairro era uma forma de fazer uma referência velada a ele. Godard costumava escolher locais, exteriores ou interiores, em relação a algo muito preciso em sua vida que normalmente não conhecíamos.
P - Já falamos sobre o hábito de Godard de trabalhar no último minuto, sem um roteiro tradicional. Na sua opinião, existe uma contradição entre essa forma de trabalhar e seu gosto pela precisão?
R - Não, de jeito nenhum. Ele precisava se sentir em perigo, e talvez aí esteja seu gênio particular.
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Eric Rohmer (falecido em 11/01/2010) e JL Godard. |
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Obs: As fotos da matéria foram escolhidas por mim. E os textos e comentários das mesmas também são de minha autoria.
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