JL Godard (entrevista para Cahiers): Num mundo de violência, é a violência que controla a forma como as coisas evoluem!

JL Godard (entrevista para Cahiers): Num mundo de violência, é a violência que controla a forma como as coisas evoluem!

Jean-Luc Godard na capa da 'Cahiers du Cinéma', revista do qual ele foi um dos críticos mais importantes, em edição de Outubro de 2022, publicada em homenagem ao cineasta genial, após o seu falecimento, em 13/09/2022.

Em 03 de dezembro de 1930 nasceu um dos mais geniais, inovadores, ousados e influentes cineastas de todos os tempos (quem nega isso é porque não sabe coisa alguma sobre cinema), que influenciou (e influencia) gerações de cineastas, incluindo nomes como Scorsese, Friedkin, Coppola, Bogdanovich, Sganzerla, Glauber,  Wim Wenders, Chantal Akerman, Claire Denis, Fassbinder, Todd Haynes, entre muitos outros (as). Em homenagem ao mestre Godard, reproduzo essa entrevista que ele concedeu para a 'Cahiers du Cinéma' em outubro de 1965. 

da 'Cahiers du Cinéma', edição de Outubro de 1965.

(A seguinte entrevista com Jean-Luc Godard – conduzida por Jean-Louis Comolli, Michel Delahaye, Jean-André Fieschi e Gérard Guégan – apareceu na edição de outubro de 1965 da Cahiers du Cinéma, após o lançamento do filme na França.)

Cahiers du Cinéma: Qual foi exatamente o ponto de partida para Pierrot le fou?

Jean-Luc Godard: Um romance estilo Lolita cujos direitos eu havia comprado dois anos antes. O filme deveria ter sido feito com Sylvie Vartan. Ela recusou.

Em vez disso, fiz 'Band of Outsiders'. Depois tentei montar o filme novamente com Anna Karina e Richard Burton. Burton, infelizmente, havia se tornado muito hollywoodiano.

No final, tudo mudou com a escalação de Anna e [Jean-Paul] Belmondo. Pensei em 'You Only Live Once' e, em vez do casal tipo 'Lolita' ou 'La chienne', quis contar a história do último casal romântico, os últimos descendentes de 'La nouvelle Héloïse', 'Werther', e 'Hermann e Dorothea'.

Cahiers: Esse tipo de romantismo é desconcertante hoje, assim como o romantismo de 'As Regras do Jogo' era na época.

Godard: Ficamos sempre desconcertados com uma coisa ou outra. Numa tarde de domingo, há algumas semanas, voltei a ver 'Outubro' na Cinemateca. O público era composto inteiramente por crianças, que iam ao cinema pela primeira vez, por isso reagiram como se fosse o primeiro filme que tinham visto.

Podem ter ficado desconcertados com o cinema, mas não com o filme.

Por exemplo, eles não ficaram nem um pouco incomodados com a montagem rápida e sintética. Quando virem agora um filme de Verneuil, ficarão desconcertados porque pensarão: “Mas há menos tomadas do que em Outubro”.

Tomemos outro exemplo, da América, onde a televisão é muito mais fragmentada do que na França. Lá não se assiste apenas a um filme do começo ao fim, vê-se quinze programas ao mesmo tempo enquanto se faz outra coisa, sem falar nos comerciais (se faltassem, isso seria desconcertante). 'Hiroshima [mon amour]' e 'Lola Montès' foram muito melhores na TV americana do que nos cinemas.

Cahiers: Pierrot, em todo caso, vai agradar as crianças. Elas podem sonhar enquanto assistem.

Godard: O filme, infelizmente, é proibido para menores de dezoito anos. Razão? Anarquia intelectual e moral.

Cahiers: Há muito sangue em Pierrot.

Godard: Sangue não, vermelho. De qualquer forma, acho difícil falar sobre o filme. Não posso dizer que não resolvi, mas não pensei previamente. Tudo aconteceu ao mesmo tempo: é um filme em que não houve escrita, edição, mixagem – bom, um dia! [Antoine] Bonfanti nada sabia sobre o filme e mixou a trilha sonora sem preparação.

Ele reagiu com seus botões como um piloto diante de bolsas de ar. Isso estava muito de acordo com o espírito do filme. Então a construção veio junto com o detalhe. Foi uma série de estruturas que imediatamente se encaixaram umas nas outras.

Cena de 'For Ever Mozart' (1996), belo filme de Godard que trata da incapacidade dos artistas, e da Arte, de combater as guerras e injustiças do mundo.

Cahiers: 'Band of Outsiders' e 'Alphaville' aconteceram da mesma forma

Godard: Desde o meu primeiro filme sempre digo que vou preparar o roteiro com mais cuidado, e cada vez vejo mais uma chance de improvisar, de fazer tudo na filmagem, sem aplicar o cinema em nada.

A minha impressão é que quando alguém como Demy ou Bresson faz um filme, ele tem uma ideia do mundo que está tentando aplicar ao cinema, ou então – o que dá no mesmo – uma ideia de cinema que ele aplica ao mundo. O cinema e o mundo são moldes para a matéria, mas em 'Pierrot' não há molde nem matéria.

Cahiers: Às vezes parece haver uma interação entre certas situações que existiam no momento da filmagem e o próprio filme. Por exemplo, quando Anna Karina caminha pela praia dizendo: “O que há para fazer? Não sei o que fazer…”, como se, neste momento, ela não soubesse o que fazer, tivesse dito, e você a tivesse filmado.

Godard: Não foi assim que aconteceu, mas talvez dê no mesmo. Se eu tivesse visto uma garota andando pela praia dizendo: “Não sei o que fazer”, poderia muito bem ter pensado que esta era uma boa cena e, a partir daí, imaginado o que veio antes e depois.

Em vez de falar do céu, falar do mar, que não é a mesma coisa; em vez de ficar triste, ser feliz, em vez de dançar, fazer cena com gente comendo, o que novamente não é a mesma coisa; mas o efeito final teria sido o mesmo. Na verdade, aconteceu assim não nesta cena, mas em outra em que Anna diz a Belmondo: “Oi, meu velho!” e ele imita Michel Simon. Isso aconteceu da maneira que você sugere.

Cahiers: Sente-se que o tema só surge quando o filme termina. Durante a exibição pensa-se que é isso ou aquilo, mas no final percebe-se que se trata de um assunto real.

Godard: Mas isso é cinema. A vida se organiza sozinha. Nunca se sabe ao certo o que se vai fazer amanhã, mas no final da semana pode-se dizer, depois do acontecimento, “eu vivi”, como Camille de Musset.

Então percebemos que também não podemos brincar com o cinema. Você vê alguém na rua; em cada dez transeuntes, há alguém que você observa mais de perto por um motivo ou outro. Se é menina, porque ela tem olhos assim, homem, porque ele tem um ar particular, e aí você filma a vida deles.

Surgirá um sujeito que será a própria pessoa, sua ideia de mundo, e o mundo criado por essa ideia, a ideia geral que isso evoca. No prefácio de um de seus livros, Antonioni diz justamente isso.

Cahiers: Parece que Pierrot se passa em dois períodos. Na primeira, Karina e Belmondo dirigem-se à Côte d'Azur, sem cinema, porque esta é a vida deles; e então, ao chegarem, eles encontraram um diretor e lhe contaram sua história, e ele os fez começar tudo de novo.

Godard: Até certo ponto sim, porque toda a última parte foi inventada na hora, ao contrário do início, que foi planejado. É uma espécie de acontecimento, mas controlado e dominado. Dito isto, é um filme completamente espontâneo.

Nunca estive tão preocupado como dois dias antes do início das filmagens. Eu não tinha nada, absolutamente nada. Ah, bem, eu tinha o livro. E um certo número de locais. Eu sabia que isso aconteceria à beira-mar.

A coisa toda foi filmada, digamos, como na época de Mack Sennett. Talvez eu esteja me distanciando cada vez mais de uma seção do cinema atual.

Assistindo a filmes antigos, nunca se tem a impressão de que eles estavam entediados de trabalhar, provavelmente porque o cinema era algo novo naquela época, enquanto hoje as pessoas tendem a considerá-lo muito antigo. Dizem: “Vi um filme antigo de Chaplin, um filme antigo de Griffith”, enquanto ninguém diz: “Li um antigo Stendhal, uma antiga Madame de La Fayette”.

Hanna Schygulla e Isabelle Huppert, em 'Passion' (1982).

 

Cahiers: Você acha que trabalha mais como pintor do que como romancista.

Godard: Jean Renoir explica isso muito bem no livro que escreveu sobre seu pai. Auguste iria embora, sentindo necessidade do país. Ele foi lá. Ele caminhou na floresta. Ele dormiu na pousada mais próxima. Depois de algumas semanas, ele voltava com a pintura terminada.

Cahiers: Os primeiros filmes nos contam muito sobre o período em que foram feitos. Isto já não se aplica a 75% das produções atuais. Em Pierrot le fou, a vida contemporânea e o fato de Belmondo estar a escrever o seu diário dão ao filme a sua real dimensão?

Godard: Anna representa a vida ativa e Belmondo a contemplativa. Isso é uma forma de contrastá-los. Como nunca são analisados, não há cenas analíticas ou diálogos. Queria, indiretamente através do diário, dar a sensação de reflexão.

Cahiers: Seus personagens se deixam guiar pelos acontecimentos.

Godard: Eles são abandonados à própria sorte. Eles estão dentro de sua aventura e de si mesmos.

Cahiers: O único ato real que Belmondo realiza é quando tenta apagar o fusível.

Godard: Se ele tivesse divulgado, ele teria se tornado diferente depois. Ele é como [Michel] Piccoli em 'O Desprezo'.

Cahiers: A aventura é suficientemente total para não se saber o que vem a seguir.

Godard: Isso porque é um filme sobre a aventura e não sobre os aventureiros. Um filme sobre aventureiros é 'The Far Country', de Anthony Mann, onde você pensa na aventura porque eles são aventureiros; enquanto em 'Pierrot le fou' pensa-se que se trata de aventureiros porque descreve uma aventura. De qualquer forma é difícil separar um do outro. 

Sabemos por Sartre que a livre escolha que o próprio indivíduo faz se confunde com o que costumamos chamar de seu destino.

Cahiers: Ainda mais que em 'O Desprezo', a presença poética do mar…

Godard: Isso foi deliberado, muito mais do que em 'O Desprezo'. Este é o tema.

Cahiers: Exatamente como se os deuses estivessem no mar.

Godard: Não, a natureza, a presença da natureza, que não é romântica nem trágica.

Cahiers: A aventura parece ter desaparecido hoje, não ser mais bem-vinda, daí o elemento de provocação agora na aventura e em Pierrot le fou.

Godard: As pessoas classificam a aventura. “Estamos de férias”, dizem eles. “A aventura começará assim que estivermos à beira-mar.” Eles não se consideram vivendo a aventura quando compram as passagens de trem, enquanto no filme tudo está no mesmo nível: comprar passagens de trem é tão emocionante quanto nadar no mar.

Cahiers: Você acha que todos os seus filmes, independentemente da forma como são tratados, são sobre o espírito de aventura?

Godard: Certamente. O importante é ter consciência de que existe. Durante três quartos do dia, esquecemos essa verdade, que surge novamente quando você olha para as casas ou para um sinal vermelho, e tem a sensação de existir naquele momento. Foi assim que Sartre começou a escrever seus romancesNáusea, é claro, foi escrito durante o grande período em que Simenon publicava Touristes de bananes, Les suicidés. Para mim não há nada de muito novo nesta ideia, que é realmente muito clássica.

Cahiers: Para a maioria dos espectadores, o cinema existe apenas em termos das estruturas de Hollywood que se tornaram convenções, enquanto todos os grandes filmes são livres na sua inspiração.

Godard: O grande cinema tradicional significa Visconti, em oposição a Fellini ou Rossellini. É uma forma de selecionar certas cenas em vez de outras. A Bíblia é um livro tradicional, pois efetua uma escolha naquilo que descreve. Se algum dia eu fosse filmar a vida de Cristo, filmaria as cenas que ficam de fora da Bíblia.

Em 'Senso', de que gosto bastante, eram as cenas que Visconti escondeu que eu queria ver. Cada vez que eu queria saber o que Farley Granger dizia para Alida Valli, bang! – um fade-out. Pierrot le fou, desse ponto de vista, é a antítese do Senso: os momentos que você não vê no Senso são mostrados em Pierrot.

Pierrot le fou '(1965) é uma das obras-primas de Godard. Foi depois que o assistiram que Todd Haynes e Chantal Akerman decidiram se tornar cineastas. 

Cahiers: Talvez a beleza do filme resida no fato de que se sente mais essa liberdade.

Godard: O problema do cinema é que ele impõe uma certa duração. Se os meus filmes revelam alguma sensação de liberdade é porque nunca penso na duração. Nunca sei se o que estou filmando durará vinte minutos ou o dobro disso, mas geralmente acontece que o resultado se enquadra na norma comercial. Nunca tenho nenhum esquema de horário. Filmo o que preciso, parando quando penso que tenho tudo, continuo quando penso que há mais.

Este comprimento total depende apenas de si mesmo.

Cahiers: Em um filme clássico, questionaríamos a estrutura do thriller.

Godard: No nível narrativo, os filmes clássicos não podem mais rivalizar nem mesmo com os thrillers da Série Noire, sem falar de contadores de histórias natos como Giono, que podem mantê-lo em suspense por dias a fio. Os americanos são bons em contar histórias, os franceses não. Flaubert e Proust não sabem contar histórias. Eles fazem outra coisa. O mesmo acontece com o cinema, embora partindo do seu ponto de chegada, de uma totalidade.

Qualquer grande filme moderno que faz sucesso é devido a um mal-entendido. O público gosta de 'Psicose' porque acha que Hitchcock está lhes contando uma história. 'Vertigo' os confunde pelo mesmo motivo.

Cahiers: Então a liberdade passou do cinema para a Série Noire. Você se lembra da 'Chave de Vidro'? O fim?

Godard: Não muito claramente. Eu gostaria de relê-lo.

Cahiers: No final, uma mulher que quase não apareceu na história, de repente, conta um sonho.

Godard: Os americanos são maravilhosos assim.

Cahiers: No sonho existe uma chave de vidro. Só isso, e o romance se chama 'The Glass Key'. E o livro termina com esse sonho. Se alguém fizesse algo assim no cinema, as pessoas diriam que era uma provocação. Este tipo de reação é típica de um público que tem uma pseudocultura cinematográfica mas que, no entanto, se entrega a táticas terroristas.

Godard: É por isso que a Cinemateca é tão boa, porque lá se veem filmes desordenados, um Cukor de 1939 ao lado de um documentário de 1918.

Cahiers: Não há conflito entre o antigo e o moderno?

Godard: Nenhum. Pode haver progresso técnico, mas nenhuma revolução de estilo, ou pelo menos ainda não.

Cahiers: Com Pierrot le fou, parece que estamos assistindo ao nascimento do cinema.

Godard: Senti isso com o filme de Rossellini sobre o aço, porque capta a vida como fonte. A televisão, em teoria, deveria ter o mesmo efeito. Graças ao álibi cultural, não existem súditos nobres ou plebeus. Tudo é possível na televisão. Muito diferente do cinema, onde seria impossível filmar o prédio do boulevard Haussman, porque para uma distribuidora este não é um assunto nobre.

Cahiers: Por que você acha que certas cenas são filmadas e não outras? Esta escolha define a liberdade ou leva à convenção?

Godard: O problema que há muito me ocupa, mas com o qual não me preocupo enquanto filmo, é: por que filmar uma cena  em vez de outra? Veja uma história, por exemplo. Um personagem entra em uma sala – uma cena. Ele se senta – outra cena. Acende um cigarro, etc. Se em vez de tratar assim, alguém…o filme seria melhor ou menos bom.

O que é que faz com que alguém dê um tiro ou mude para outro? Um diretor como Delbert Mann provavelmente não pensa assim. Ele segue um padrão. Cena – o personagem fala; ângulo reverso, alguém responde. Talvez seja por isso que Pierrot le fou não é um filme, mas uma tentativa de cinema.

Sartre e Godard, quando ambos eram maoístas e fundaram o jornal 'Libération', em 1973.

Cahiers: E o que Fuller diz no início?

Godard: Há muito tempo eu queria dizer isso. Eu pedi a ele. Mas foi o próprio Fuller quem encontrou a palavra emoção. A comparação entre filmes e uma operação de comando é, sob todos os pontos de vista – financeiro, econômico, artístico – uma imagem perfeita, um símbolo perfeito para um filme na sua totalidade.

Cahiers: Quem é o inimigo?

Godard: Há duas coisas a considerar. Por um lado, o inimigo que o atormenta; de outro, o objetivo a ser alcançado, onde o inimigo pode estar. O objetivo a ser alcançado é o filme, mas uma vez finalizado percebe-se que foi apenas uma passagem, um caminho para o objetivo. O que quero dizer é que quando a guerra é vencida, a vida continua. E talvez o filme realmente comece então.

Cahiers: Esse tipo de liberdade no cinema não é bastante assustador?

Godard: Não mais do que atravessar uma estrada, usando ou não um cruzamento. Pierrot parece estar livre e confinado ao mesmo tempo. O que mais me preocupa nesta aparente liberdade é outra coisa. Li algo de Borges onde ele falava de um homem que queria criar um mundo. Então ele criou casas, províncias, vales, rios, ferramentas, peixes, amantes, e então no final da vida ele percebe que este “labirinto paciente não é outro senão o seu próprio retrato”. Tive exatamente a mesma sensação no meio de Pierrot.

Cahiers: Por que a citação sobre Velázquez?

Godard: Este é o tema. Sua definição. Velázquez no final da vida já não pintava formas precisas, pintava o que havia entre as formas precisas, e isso é reafirmado por Belmondo quando imita Michel Simon: não se deve descrever as pessoas, mas o que há entre elas.

Cahiers: Se Pierrot le fou é um filme instintivo, pode-se perguntar por que existem conexões com a vida e a realidade.

Godard: É inevitável, pois fazer Pierrot le fou consistiu em viver um acontecimento. Um evento é composto de outros eventos que eventualmente se descobre. Em geral, repito, fazer um filme é uma aventura comparável à de um exército avançando por um país e vivendo às custas dos habitantes. Então somos levados a falar sobre esses habitantes.

A atualidade é isso: é tanto o que se chama de atualidade no sentido cinematográfico e jornalístico, quanto os encontros casuais, o que se lê, o que se conversa, o negócio de viver, em outras palavras.

Cahiers: Cada vez que a realidade surge no filme, tem-se a impressão de que há uma ruptura de humor.

Godard: Quando, por exemplo?

Cahiers: As referências à Guerra do Vietnã…

Godard: Acho que não. Num mundo de violência, é a violência que controla a forma como as coisas evoluem. Anna e Belmondo conhecem alguns turistas americanos e sabem como diverti-los. Eles jogam o jogo. Se tivessem conhecido turistas russos ou espanhóis, provavelmente teriam agido de forma diferente. 

É claro que fui eu quem optou por receber turistas americanos em vez de qualquer outro. Mas, de qualquer forma, combinava com o aspecto do teatro improvisado. 

Alguém que regressou da China disse-me que acontece assim: de repente, num mercado, aparecem cinco pessoas; um desempenha o papel de imperialista americano, e assim por diante. Assim como crianças brincando de polícia e ladrão. 

Minha inclusão de um noticiário sobre o Vietnã depois disso foi pura lógica: era para mostrar a Belmondo que eles estavam jogando um jogo, mas que, mesmo assim, a questão do jogo deles preexistia.

Cena de "Éloge de l'Amour" (2001), um bonito e melancólico filme que trata da Guerra do Kosovo, desigualdades sociais, um artista em crise e mostra um Godard pessimista.

Cahiers: Por outro lado, você consideraria filmar um tema político com repercussões individuais?

Godard: Um assunto puramente político é difícil de abordar. Para a política, é necessário compreender os pontos de vista de quatro ou cinco pessoas diferentes e, ao mesmo tempo, ter uma compreensão geral ampla. A política envolve passado e presente. Quando chegamos às memórias de Churchill, entendemos muito claramente o que está acontecendo hoje. 

Você pensa: “Então era isso que ele estava pensando quando participou de tal ou tal conferência”; mas você só aprende isso vinte anos depois. No cinema é mais difícil: você não tem tempo, pois está lidando com o presente. O que me interessaria é a vida de um estudante, a história de Clarté, por exemplo. 

Mas um filme sobre a vida de um editor de Clarté teria sido possível há dois anos. Agora é tarde demais ou cedo demais. Deveria ter sido feito na época, pois a situação o permitia, com um cenário amplo e trabalhando nos moldes do cinema verité sujeito a direção e organização estrutural.

Cahiers: Costuma-se dizer que arrastar uma política como esta para uma história como a aventura de Anna-Belmondo é diletantismo.

Godard: A resposta é simples: você pode ler 'Le Monde' a sério ou como um diletante. De qualquer forma, o fato é que você lê, e isso faz parte da vida. No cinema, porém, não se deve, se estiver numa sala, simplesmente abrir a janela e filmar o que se passa lá fora. Os resmungões veem isto como uma ruptura na unidade, mas todos os que não conseguem ver onde reside a unidade.

Pode-se sentir que em Pierrot a unidade é puramente emocional e apontar que algo não se enquadra nessa unidade emocional; mas simplesmente dizer que a política não tem o direito de estar ali é inútil, uma vez que faz parte da unidade emocional.

Aqui voltamos à antiga classificação por gêneros: um filme é poético, psicológico, trágico, mas não se pode simplesmente ser um filme. Naturalmente, se eu fizesse um filme sobre o caso Dreyfus, veríamos muito pouco sobre o caso e muito sobre as pessoas e as suas relações pessoais.

Outra coisa fascinante a fazer agora seria a vida de um estenodatilógrafo em Auschwitz (Mikhail Romm fez uma compilação documental neste sentido chamada Fascismo Ordinário).

Mas um filme sobre um estenodatilógrafo em Auschwitz seria odiado por todos. A chamada esquerda sempre foi a primeira a criticar os verdadeiros cineastas de esquerda, tanto Pasolini como Rossellini na Itália, Dovzhenko e Eisenstein na Rússia. Só se pode falar do meio que conhecemos inicialmente; mais tarde, com a idade e a experiência, esse meio se abre.

É muito curioso que em França nunca tenha havido filmes sobre a Resistência. Os italianos, é claro, lidaram com o problema da Resistência e da libertação em termos políticos, porque os tinham vivido de uma forma muito mais óbvia, e o fascismo tinha afetado mais a Itália do que a França.

No entanto, de um ponto de vista emocional, as vidas da geração anterior à nossa foram completamente perturbadas pela guerra. Mesmo agora, ainda vivem os dias pré-guerra e não emergiram no período pós-guerra. Mas também não há filmes sobre isso.

Nenhum filme sobre as aventuras dos irmãos Ponchardier, os verdadeiros Frank e Jesse James da Resistência. Na América ou na Rússia haveria vinte filmes sobre Moulin, o Maquis des Glières e assim por diante. Na França, um filme tentou evocar o ambiente de 1944, Les honneurs de la guerre, de Dewever. Foi praticamente proibido.

Assim que surge um filme mais ou menos honesto, surge um clima de suspeita e menosprezo.

Cena de 'Détective' (1985), o filme Neo-Noir de Godard, que reinventou as regras do gênero, é claro. Na cena nós vemos Julie Delpy, com apenas 14 anos de idade, estreando no Cinema. Julie também atuou em 'King Lear' (1987).

 

Cahiers: Parece haver uma relutância na França em considerar a libertação em termos ideológicos.

Godard: As coisas são mais abertas na Itália. Na França, a política é um problema vergonhoso. É por isso que a política francesa simplesmente não existe […]

Cahiers: Você fala frequentemente sobre música e pintura: por que é que, com duas exceções – 'Les carabiniers' e 'Uma Mulher Casada' – a música nos seus filmes é deliberadamente “música de cinema”?

Godard: Porque não tenho ideias sobre música. Sempre pedi mais ou menos a mesma música de compositores diferentes. Todos eles escreveram músicas muito parecidas, mais ou menos, e eu sempre pedi em geral o que é conhecido como “música de cinema”.

Cahiers: Se alguém ouvisse sem ver o filme…

Godard: Seria inútil. 

Cahiers: No entanto, você trabalhou com um jovem músico, [Philippe] Arthuys, em Les Carabiniers.

Godard: Isso era música atrasada, por assim dizer. Pedi a Arthuys que tentasse escrever o tipo de música que [Albert] Juross poderia imaginar se sua mente tivesse alguma possibilidade. É uma música grosseira, retrógrada, de homem das cavernas.

De qualquer forma, três quartos dos meus filmes poderiam passar sem música. Usei música, mas se não tivesse usado, o filme não seria diferente.

Em Alphaville a música parece contrapor, até mesmo negar, as imagens: tem um ar tradicional, romântico, que desmente o mundo de Alpha 60. Aqui ela é um dos elementos narrativos – evoca a vida, é a música do mundo lá fora, eu uso a música deles em vez de filmá-los. São sons que deveriam ter valor de imagem. Nunca usei música de outra forma. Desempenha o mesmo papel que o preto na pintura impressionista.

Cena de 'A Chinesa' (1967), clássico político de Godard. 

Cahiers: Se a música desempenha um papel mais importante, então o próprio músico deveria fazer o filme?

Godard: Não vejo por que Boulez não deveria fazer filmes, como fez Guitry. Ou se alguém quiser usar a música dele – ou a de Stravinsky – eles deveriam fazer o filme. Eu nunca pediria a Stravinsky para compor uma partitura de fundo para mim. O que eu preciso é do mau Stravinsky, porque se o que eu uso for bom, tudo o que eu filmei perde o valor.

Não posso trabalhar com um argumentista pela mesma razão: um músico concebe a sua música a partir do seu próprio mundo musical, e eu concebo os meus filmes a partir do meu próprio mundo cinematográfico. Um somado ao outro é demais, eu sinto. Para mim a música é um elemento vivo, tal como a rua ou os carros. É algo que descrevo, algo preexistente ao filme.

Cahiers: E a cor em Pierrot le fou? Por exemplo, os reflexos coloridos no para-brisa do carro…

Godard: Quando você dirige em Paris à noite, o que você vê? Luzes vermelhas, verdes e amarelas. Queria mostrar esses elementos, mas sem necessariamente colocá-los como são na realidade. Assim como permanecem na memória – manchas de vermelho e verde, flashes de amarelo passando. Queria recriar uma sensação através dos elementos que a constituem.

Cahiers: Esta é novamente a mão do pintor…

Godard: Mas penso que se pode ir muito mais longe nesta direção – sem, no entanto, repetir o que Butor fez na literatura. Isso é muito fácil de conseguir no cinema. Os escritores sempre quiseram usar o cinema como uma página em branco: para organizar todos os elementos e deixar a mente circular de um para outro.

Mas isso é tão fácil de fazer no cinema. Ao contrário do que diz Belmondo em Pierrot, Joyce não interessa ao cinema. De qualquer forma, o cinema mudo foi igualmente longe.

Perdemos uma parte considerável das descobertas do cinema mudo e só agora começamos a redescobri-las porque estamos a regressar à simplicidade e porque a influência do cinema sonoro tal como era praticado começa a desaparecer.

O grande cinema mudo nunca significou a aplicação de um determinado estilo a um determinado acontecimento. Na minha opinião, o cinema deveria ser mais poético num sentido mais amplo, enquanto a própria poesia deveria ser aberta.

Cahiers: É preciso lidar com tudo e qualquer coisa.

Godard: Há dois ou três anos senti que tudo estava feito, que não havia mais nada a fazer hoje. Não consegui ver nada para fazer que já não tivesse sido feito. Ivan, o Terrível, foi feito e O Pão Nosso de Cada Dia. Faça filmes sobre as pessoas, disseram; mas The Crowd já havia sido feito, então por que refazê-lo? Eu estava, em uma palavra, pessimista. Depois de Pierrot, não sinto mais isso. Sim, é preciso filmar, falar, tudo. Resta tudo por fazer.

Godard foi um exímio frasista. 

LINK: 

https://a-bittersweet-life.tumblr.com/post/4220398026/lets-talk-about-pierrot-an-interview-with

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