Entrevista - Andrei Tarkovsky: 'A Aventura', de Antonioni, é o meu filme favorito!
Entrevista - Andrei Tarkovsky: 'A Aventura', de Antonioni, é o meu filme favorito!
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O russo Andrei Tarkovsky (1932-1986) foi um dos mais brilhantes cineastas da história. |
Uma conversa entre Andrei Tarkovsky e Tonino Guerra (1979) - Tarkovsky no espelho!
O que se segue é a transcrição de uma entrevista gravada em fita com Andrei Tarkovsky, conduzida por Tonino Guerra.
Referência: "Panorama", número 676, 3 de Abril de 1979, páginas 160-161, 164, 166, 169-170.
A peça foi traduzida do italiano para o inglês exclusivamente para Nostalghia.com por David Stringari de Fairfield, Connecticut, EUA. A entrevista começa após uma breve introdução ...
Introdução
Heróis de estatura humana, casas, objetos, sons que se transformam em música, verdadeiras memórias, imagens fantásticas. Do encontro entre o poeta-roteirista italiano e o maior cineasta soviético, a história secreta de uma ideia que vira filme.
Cinco cômodos no décimo terceiro andar de um grande edifício em meio a muitos prédios grandes nas colinas Lenin, em Moscou, a sala de estar com móveis vagamente góticos, o armário de vidro decorado com padrões azuis, um grande cachorro que vagueia; na frente das janelas, pendurados em fios, pedaços de madeira, raízes, que lembram esculturas ou animais, nas paredes alguns quadros de amigos e muitos desenhos do filho.
É a casa de Andrei Tarkovsky, 47 anos, o maior cineasta russo e entre os maiores do mundo hoje, autor de Ivan's Childhood (vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1962), Andrei Rublev, Solaris, Mirror e Stalker. 'O Espelho' chega hoje à Itália: a estreia nacional será em Saint-Vincent, no dia primeiro de abril. E Tarkovsky virá de Moscou.
Não será a primeira viagem do diretor à Itália. Mas Tarkovsky certamente estará olhando em volta com olhos mais atentos. Nos últimos dois meses, ele tem trabalhado com Tonino Guerra em Moscou no tratamento da história de seu próximo filme: Viagem à Itália.
Guerra, um poeta (seus poemas em dialeto Romagnol aparecerão em maio no jornal soviético Inostrannaya Literatura, traduzido por Bella Achmadulina, Yevgheni Solonovic e Roman Sev), romancista e um dos maiores roteiristas italianos: precisamente nestes dias, Christ Stopped at Eboli and Suspicious Deaths, de Francesco Rosi e de Jacques Deray, cujos roteiros ele foi coautor, estão estreando.
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Tarkovsky e Fellini: Dois dos maiores nomes do Cinema. |
Na União Soviética, Guerra começou a escrever um Guia para Amar Moscou, um livro de conselhos, de pequenos segredos, de encontros, uma aventura no frio. Mas, além do "guia", Guerra está trabalhando no filme italiano de Tarkovsky.
O diretor deve vir filmar para a televisão RAI no próximo verão. Será uma aventura no calor: as experiências de um viajante curioso e inquieto que olha a Itália por dentro e se lembra da Rússia distante.
Nas últimas semanas, Guerra também falou com Tarkovsky sobre Mirror e, principalmente, Stalker. Mirror é sobre a tentativa de um doente de cerca de quarenta anos de fazer um balanço de sua vida. Stalker é o filme mais recente de Tarkovsky, que ele concluiu em 16 de março. O diretor trabalhou nisso por dois anos. Devido a um acidente técnico, ele teve que refazer metade do filme.
Stalker é quase uma história de ficção científica. Um pobre coitado, um vagabundo que fica entre o idealista e o Dom Quixote, que mora num barraco com a mulher e a filha, e cujo "trabalho" consiste em guiar quem se dirige a ele para uma zona proibida, evitando a vigilância dos polícia e militares.
Parece também que uma espaçonave pousou no ponto central da Zona e partiu deixando para trás uma espécie de energia misteriosa, um poder mágico, capaz de tornar reais os desejos que uma pessoa deseja expressar. O filme é a história de uma dessas viagens: o "guia" acompanha um escritor e um cientista até a Zona.
É uma aventura, sempre arriscada, que se transforma em confissão e conflito tripartido, em que cada um dos protagonistas revela o motivo que o impulsionou a participar do empreendimento. Os três chegam ao "lugar mágico", ao maravilhoso "quarto" e, como nos filmes de mistério, é melhor não revelar o que ali ocorre.
Guerra viu um corte bruto de Stalker (ele é um dos poucos que viu). Ele ficou muito impressionado ("É uma obra-prima", diz ele) e falou longamente sobre isso com o autor.
Mas a discussão então foi além do filme, passou a ser uma discussão sobre cinema entre dois grandes homens do cinema. Havia um gravador ligado na sala de estar da casa de Tarkovsky. Então aqui está, para os leitores do Panorama, essa conversa.
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Andrei Tarkovsky e Michelangelo Antonioni. O cineasta russo sempre foi um grande admirador da obra inovadora de Antonioni. |
ENTREVISTA
GUERRA: O que significa a palavra "Stalker"?
TARKOVSKY: É uma palavra derivada do verbo inglês "stalk", aproximar-se furtivamente, muito silenciosamente. No filme, indica a profissão de quem atravessa as fronteiras e penetra em uma Zona Proibida com um objetivo específico: um pouco como um gangster, ou um contrabandista, um contrabandista. Um Stalker é uma espécie de trabalho que é transmitido de geração em geração.
Na verdade, parece-me que os espectadores devem duvidar não só da existência de outros stalkers, mas também da existência da Zona Proibida. Talvez até o lugar onde os desejos são realizados seja apenas um mito. Ou uma piada. Ou talvez seja apenas uma fantasia do nosso protagonista. Para o público, isso permanece um mistério. A existência, na Zona, da “sala” em que os desejos se realizam, serve apenas como pretexto para descobrir as personalidades dos três protagonistas do filme.
P - Que tipo de personagem é o seu perseguidor?
AT - Ele é um homem extremamente honesto, limpo e, por assim dizer, intelectualmente inocente. Sua esposa o caracteriza como "abençoado". Ele guia os homens para a Zona para "fazê-los felizes", como ele mesmo diz.
Ele se dedica com o máximo desinteresse, totalmente, a essa ideia. Parece-lhe que é a única maneira de fazer os homens felizes. Sua história é essencialmente a do último idealista: a de um homem que acredita na possibilidade de uma felicidade independente da vontade e do esforço do homem.
A sua profissão dá um sentido total e exclusivo à sua existência: como um padre da Zona, o perseguidor conduz os homens até lá, para que sejam felizes. Na verdade, ninguém consegue manter com precisão se alguém efetivamente ficou feliz ou não lá embaixo.
No final da viagem à Zona, sob a influência de quem guia, perde a própria fé: a fé na possibilidade de fazer qualquer pessoa feliz. Ele não consegue encontrar indivíduos capazes de acreditar nesta Zona, na possibilidade de encontrar a felicidade, de chegar ao "quarto". Em conclusão, ele redescobre apenas sua própria ideia da felicidade dos homens obtida com a ajuda de uma fé pura.
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'Stalker' (1979), uma das obras-primas de Tarkovsky. |
P - Quando você teve a ideia desse filme?
AT - Você não é o primeiro, Tonino, a me fazer essa pergunta. Como tive a ideia de fazer este ou aquele filme? Nunca fui capaz de dar uma resposta interessante. A ideia de um filme sempre me vem de uma maneira muito comum, entediante, aos poucos, por fases um tanto banais. Recontar isso seria apenas uma perda de tempo. Não há realmente nada de fascinante, nada de poético nisso.
Ah, se alguém pudesse representar aquele momento como uma espécie de iluminação repentina! Numa entrevista, Ingmar Bergman, se bem me lembro, contou como a ideia, ou melhor, a imagem de um de seus filmes lhe veio de repente, ao observar um raio de luz no chão de um quarto escuro. Não sei, evidentemente acontece. Isso nunca aconteceu comigo.
Naturalmente, ocorre que certas imagens surgem repentinamente, mas depois mudam, talvez inadvertidamente, como em um sonho, e muitas vezes se transformam, de maneira incômoda e inexorável, em algo irreconhecível e novo.
P - No entanto, há uma história por trás do nascimento de Stalker?
AT - Certa vez, recomendei ao meu amigo, o diretor Georgy Kalatozisvili, que lesse o romance Roadside Picnic, pensando que talvez estivesse interessado em fazer uma adaptação cinematográfica dele. Aí, não sei como, Kalatozisvili não conseguiu chegar a um acordo com os irmãos Strugatsky, os autores do romance, e por isso abandonou a ideia desse filme. De vez em quando, essa ideia começava a vir à minha mente novamente.
Então, cada vez mais, parecia-me que daquele romance se poderia fazer um filme com uma unidade de lugar, de tempo e de ação. Essas unidades aristotélicas clássicas, parecia-me, permitem chegar ao cinema autêntico, que para mim não é o chamado cinema de ação, cinema exterior, cinema exteriormente dinâmico.
Acreditava que o tema em que se basearia o roteiro permitia expressar de maneira muito concentrada a filosofia, por assim dizer, do intelectual contemporâneo. Ou melhor, sua condição.
Embora deva dizer que o roteiro de Stalker tem apenas duas palavras, dois nomes, em comum com o romance 'Roadside Picnic' dos Strugatsky: Stalker e Zone. Como você pode ver, a história por trás do meu filme é bastante decepcionante.
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'O Espelho' (1975). |
P - O material que já foi filmado sugere uma ideia precisa para você sobre o comentário musical?
AT - Quando vi o material que havia sido rodado pela primeira vez, pensei que o filme não precisava de música. Pareceu-me que poderia, que deveria, confiar apenas em sons. Os sons possuem uma expressividade especial: talvez não sejam capazes de substituir a música em geral, mas podem substituir soberbamente a música ilustrativa, "música de filme" para ser mais preciso.
O espectador de dez adivinha com antecedência o momento em que essa música começa; ele ouve e pensa: "lá estamos nós, tudo bem, agora está tudo claro." Eu gostaria de evitar isso a todo custo.
P - Em qualquer caso, eu entendo que também haverá música no Stalker.
AT - Eu gostaria de tentar uma música abafada, quase imperceptível pelo barulho do trem que passa debaixo das janelas da casa do Stalker. Por exemplo, a Nona Sinfonia de Beethoven (a Ode à Alegria), Wagner, ou, talvez, a Marseillaise, música, ou seja, que é bastante popular, que expressa o sentido do movimento das massas, o tema do destino de sociedade humana.
Mas esta música deve chegar apenas, através dos ruídos, aos ouvidos do público, para que, até ao fim, o espectador não saiba se a está a ouvir ou se está a sonhar.
Então eu gostaria que muitos dos ruídos e sons fossem "compostos" por um compositor. No filme, por exemplo, os três personagens percorrem uma longa distância em um bonde. Gostaria que o som do bonde nas faixas não fosse naturalista, mas elaborado por um compositor com o auxílio da música eletrônica.
Mas não de tal forma que fique claro que se trata de música e não de sons naturais. Em outras palavras, os sons devem ser parcialmente transformados pela música eletrônica de forma que se apresentem com uma nova ressonância, digamos, mais poética.
P - Mas haverá um tema principal?
AT - Haverá, e tenho a sensação de que deve evocar o Extremo Oriente, que deve estar carregada de um, por assim dizer, conteúdo zen, cujo princípio é a concentração e não a descritividade.
O tema musical principal deverá ser despojado de emoçã, por um lado, e de pensamento, por outro, de qualquer projeto programático. Terá de expressar de forma independente sua própria verdade sobre o mundo circundante. Terá que ser encerrado em si mesmo.
P - Existe algo autobiográfico em Stalker?
AT - Talvez até mais do que em Mirror, em Stalker tive que fazer uso de emoções, até mesmo memórias, que são muito pessoais. Em Mirror há a semelhança física dos atores com pessoas reais, dos cenários com lugares reais. Em Stalker há mais momentos que evocam em mim uma espécie de estranha sensação de nostalgia.
Vamos pegar o escritor. Parece-me que o ator Solonytsin seguiu muito escrupulosamente as minhas indicações: de maneira que às vezes reconheço minhas próprias características, minha maneira de falar, de uma certa maneira de se comportar, de uma certa entonação de voz: embora o escritor seja um personagem que, em geral, não gosto muito.
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'Andrei Rublev' (1966). |
P - Por quem você sente simpatia?
AT - Principalmente para o protagonista, para o Stalker. Em certo sentido, estou convencido de que há algo dentro de mim que me conecta a ele. Eu gostaria de ajudá-lo de alguma forma, de defendê-lo. Digamos que para mim ele é como um irmão. Um irmão perdido, talvez, mas mesmo assim um irmão.
Em todo caso, sinto, de maneira comovente, seus momentos de conflito com o mundo que tão facilmente o fere. Sinto que sua constituição psicológica, sua abordagem e reação à realidade são semelhantes às minhas.
Tanto que, apesar de ser um fora da lei, ele é muito mais culto, culto e inteligente, no filme, do que o escritor ou o cientista, que, no entanto, como personagens, expressam a própria ideia de inteligência, ciência, educação.
Desde o início tive vontade de fazer uma estante recheada de livros aparecer, de repente, no filme. E aparece no final do filme, numa cenografia totalmente inadequada para tal objeto. Eu gostaria de ter essa estante em minha casa. Nunca tive uma estante assim. E eu gostaria de tê-lo na mesma desordem em que o Stalker mantém o seu.
P - Existem objetos que retornam em seus filmes. Pelo menos em seus filmes mais recentes.
AT - É verdade. Começando com Solaris, e depois em Mirror e em Stalker existem os mesmos objetos, sempre os mesmos. Certas garrafas, certos livros velhos, espelhos, vários pequenos objetos nas prateleiras ou no peitoril das janelas. Só o que eu gostaria de ter em casa tem o direito de aparecer em uma tomada de um de meus filmes.
Se os objetos não são do meu agrado, simplesmente não posso me permitir deixá-los no filme, mesmo que meus personagens sejam muito diferentes uns dos outros e não se pareçam comigo. E no entanto, deste ponto de vista, elimino e anulo, com a máxima intransigência, qualquer coisa que não goste do tiro.
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'Solaris' (1972). |
P - Com relação a 'Solaris' e 'Mirror', há alguma ligação entre esses filmes e 'Stalker'? Há alguma com 'Andrei Rublev', com 'A Infância de Ivan'?
AT - Acho que sim e vou tentar esclarecer. 'Stalker' me permitiu capturar com grande precisão a ideia que estava quase implícita nos filmes anteriores. Agora entendo o que é. Não pareço acreditar na força dos chamados homens "fortes"; nem na fraqueza daqueles a quem habitualmente chamamos de fracos. Não é tão simples.
Ou, simplesmente, não é assim. Essa ideia me veio à mente quando comecei a trabalhar neste filme. Era minha intenção contar a história precisamente de um homem desse tipo: um homem efetivamente fraco, um homem efetivamente forte.
Mas de repente eu entendi que até meus filmes anteriores eram sobre esse tipo de homem. A infância de Ivan, por exemplo. Um filme sobre um menino. Um menino que morreu na guerra aos doze anos. Um menino, uma criança, portanto um ser fraco, portanto uma vítima. Mas, na verdade, esse menino me parece mais forte do que muitos dos personagens que o cercam.
Vamos pegar Andrei Rublev. Um monge humilde, cuja própria vida monástica induz humildade, mansidão; em todo caso, não é um homem forte, no sentido comum do termo.
Mas revela-se o mais forte: não só porque consegue sobreviver aos horrendos cataclismos que o cercam, a Rússia e a sua época: mas também porque soube trazer consigo, através da sua terrível biografia, a sede de criação.
Ou vamos pegar Kelvin em Solaris. Um típico pequeno-burguês, uma personalidade um tanto fraca. No início é uma figura que, menos que ninguém, pretende emergir individualmente, não deseja nada de excepcional, nada de exclusivo. Pelo contrário. Mesmo sendo um cientista, um psicólogo.
E ainda assim, ele se revela uma personalidade forte quando luta com os problemas de sua própria consciência e sabe opor-se a eles com sua própria dignidade humana. E assim é com o Stalker. Ele parece tão fraco e se revela o mais forte em seu desejo de servir aos outros homens, em sua intenção de fazê-los felizes. É isso que une meus filmes.
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'A Infância de Ivan' (1962). |
P - Mas esta ideia principal...
AT - Eu o segui inconscientemente. Ou seja, é como se eu sempre contasse a mesma história sobre o mesmo personagem: sobre um homem que, por algum motivo, a sociedade considera fraco e que considero forte. Estou convencido de que, precisamente graças a personalidades deste tipo, a sociedade pode ser forte e olhar com coragem para o futuro e resistir a tudo o que visa destruí-lo.
Da mesma forma, em 'Mirror' o protagonista é apresentado como um ser extremamente fraco e reflexivo. Um homem doente, que se lembra da própria vida durante uma crise de sua doença, sem saber se sairá dela com vida ou não. É justamente por isso que ele se lembra do que lembra.
E ao invés, eis este homem moribundo, este homem muito fraco, que se revela muito forte, porque apesar de tudo ele não pertence a si mesmo. Ele pertence às pessoas de quem se lembra, pertence ao amor que lhes deu. E se ele sofre, é só porque não amou quem o amava o suficiente. Isso é talvez fraqueza? Isso é força.
E em vez disso, quem sabe, muitos me reprovam porque meus heróis não são heróis. Existe a tendência de pensar que um herói deve ser algo poderoso, duro, uma espécie de robô. Meus heróis não são assim, e não poderiam ser assim, porque estou convencido de que não existem homens assim.
E eles não podem existir, e não devem ser imitados, porque não se deve imitar o vazio. E o público percebe isso. Nunca será capaz de acreditar em um herói de ferro.
P - Você estaria disposto a me contar o final do filme, plano a plano, como se eu fosse um cego?
AT - É uma pergunta muito interessante. Provavelmente seria bom não fazer filmes, mas apenas contá-los aos cegos. Uma bela ideia! Basta adquirir um gravador. "O pensamento expresso é uma mentira", disse o poeta.
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'Nostalgia' (1983). |
P - Tudo bem, eu não consigo ver nada. Conte-me.
AT - Um close-up: uma menina doente, a filha do Stalker, está segurando um grande livro na frente dela. Ela está enrolada em um lenço. Nós a vemos de perfil em frente a uma janela iluminada. A câmera lentamente rastreia e enquadra uma parte da mesa. Uma mesa em close, coberta de pratos sujos: dois copos e uma jarra.
A menina coloca o livro sobre os joelhos e ouvimos sua voz repetindo o que ela leu. Ela olha para um dos copos. E sob o poder de seu olhar, o vidro começa a se mover em direção à câmera. Então a menina muda seu olhar para o outro copo e o outro copo também começa a se mover.
Então a garota olha para o copo no meio da mesa e vemos que também ele começa a se mover sob a força de seu olhar. Ele se move e cai no chão, mas não se quebra. Ouvimos um trem passando perto da casa, faz um barulho estranho, as paredes tremem, tremem cada vez mais. A câmera volta ao close-up da menina, e com esse som, com esse ruído, o filme termina.
P - Quais tomadas, quais imagens em seus filmes você acredita que "roubou" de alguém, remodelando-as naturalmente à sua maneira? Nesse sentido, quais pinturas, filmes ou obras de arte exerceram alguma influência sobre você?
AT - Em geral, tenho muito medo dessas coisas e sempre procuro evitá-las. E não gosto quando alguém me lembra que neste ou naquele caso não agi com total independência. Mas agora, recentemente, a citação também está começando a se tornar interessante para mim. O espelho, por exemplo, tem uma cena, um plano, que poderia muito bem ter sido filmado por Bergman.
Refleti sobre a oportunidade de filmar a cena dessa forma. Então decidi que não era importante. Ah sim, pensei, será uma espécie de homenagem que farei a ele. É a cena em que Terekhova vende seus brincos e Larissa, a esposa do médico, os experimenta e olha para a câmera, como num espelho.
O rosto de Terekhova, olhando-se no espelho, e atrás dela, o rosto de Larissa, que se move, se aproxima da câmera e experimenta os brincos, olhando sua própria imagem refletida nas sombras:
Não sei por quê, me pareceu que era uma cena muito parecida com algo que Bergman poderia filmar.
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'A Aventura' (1960), de Antonioni: Tarkovsky disse que este é o seu filme preferido. |
P - Outra cotação?
AT - Novamente em 'Mirror', tire as fotos do episódio com o instrutor militar. São duas ou três que se inspiram claramente nas pinturas de Brueghel: o menino, as pequenas figuras do povo, a neve, as árvores nuas, o rio ao longe.
Eu construí essas fotos muito conscientemente. Quase deliberadamente. E não com a ideia de roubar ou para mostrar o quanto sou culta, mas para testemunhar meu amor por Brueghel, minha dependência dele, a marca profunda que ele deixou em minha vida.
Em 'Andrei Rublev', acredito que haja uma cena que poderia pertencer a Mizoguchi, o falecido grande diretor japonês. Foi casual. Só percebi quando o filme ficou pronto, no momento em que foi exibido. É a cena em que o príncipe russo galopa pelo campo em um cavalo branco e um tártaro em um cavalo preto.
Pareceu-me que a qualidade da imagem em preto e branco, a opacidade do dia cinza tendia a se assemelhar a uma paisagem esboçada com tinta preta da China. Os dois cavalos correm um ao lado do outro, de repente o tártaro grita, assobia, chicoteia o cavalo e começa a passar à frente do príncipe russo.
O russo se lança em sua perseguição, mas não consegue alcançá-lo. Na cena seguinte, eles estão parados. Não há mais nada. Apenas a memória do príncipe russo tentando com seu cavalo chegar ao tártaro e não conseguindo. É um plano totalmente alheio ao desenvolvimento da história.
Em vez disso, tenta apresentar um estado de espírito e iluminar a relação entre esses dois homens. É como uma brincadeira de meninos: um corre na frente do outro e fala: "Você não pode me pegar!"; o outro corre atrás dele, tentando com todas as suas forças alcançá-lo, mas ele não consegue. Mas então, imediatamente depois, eles esquecem o jogo e param de correr.
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'O Sacrifício' (1986). |
P - Essencialmente, fingir que não cita é como fingir que não tem pai e avôs e ...
AT - Eu também estou convencido disso. Parece-me que todo aspecto original na obra de escritores, pintores, músicos, cineastas genuínos sempre tem raízes profundas. Portanto, encontrar referências de muito tempo atrás é inevitável. Eu nem sei de onde vem. Talvez não seja uma característica de nossa postura espiritual, mas um aspecto típico de nosso tempo.
Porque o tempo é reversível. Pelo menos é isso que acredito. Muitas vezes descobrimos algo que já experimentamos. Quando estou trabalhando, me ajuda muito pensar em Bresson. Apenas o pensamento de Bresson! Não me lembro de nenhuma de suas obras concretas. Lembro-me apenas de sua maneira supremamente ascética. Sua simplicidade. Sua clareza. O pensamento de Bresson me ajuda a me concentrar na ideia central do filme.
P - E você já pensou em algum italiano? Você já teve o desejo de citá-los?
AT - Às vezes vem à mente Antonioni, seu período preto e branco, "L'Avventura", meu filme favorito. Ou o Fellini de '8 1/2', mas não do ponto de vista figurativo. Do ponto de vista puramente figurativo interessa-me as soluções formais, por assim dizer, de cunho espiritual, do seu Casanova, a utilização do material plástico.
Nesse filme, na minha opinião, o aspecto formal é de um nível extremamente elevado, a sua plasticidade é incrivelmente profunda. Às vezes, quando estou filmando um filme colorido, me vem à mente outra de suas tomadas, de seu episódio em 'Three Steps Into Delirium'.
[Nota do tradutor: esta é uma antologia francesa / italiana de 1968 que foi distribuída nos EUA naquele ano com o título 'Spirits of the Dead'.]
O segmento brilhante de 40 minutos de Fellini é intitulado 'Toby Dammit' e estrela Terence Stamp como um ator britânico alcoólatra que vem a Roma para estrelar o primeiro "faroeste católico" patrocinado pelo Vaticano e continua vislumbrando o diabo na forma de uma menina assustadora saltando uma bola branca.
Embora os outros dois episódios que compõem este filme antológico sejam um lixo totalmente esquecível, o episódio de Fellini é uma pequena obra-prima injustamente negligenciada que se equipara ao melhor de sua obra], do ator que vem atuar em um filme em Roma.
Uma foto esplêndida, no aeroporto: uma foto panorâmica dentro do aeroporto, retroiluminada, à noite, uma cena amarelada, com a câmera enquadrando de cima, as pessoas, os aviões atrás dos vidros, a luz. Certamente não é meu estilo. Eu gostaria de ser o mais primitivo, o mais banal possível.
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Livro 'Esculpir o Tempo', de Tarkovsky, no qual ele comenta sobre a sua obra, vida e sobre Arte. Infelizmente o livro está fora de catálogo. |
P - Você está pensando em fazer algo imediatamente após o Stalker? Para começar a trabalhar em algum novo filme?
AT - Gostaria de fazer o filme que decidimos fazer: Viagem à Itália. Mas você pode falar sobre este filme muito melhor do que eu. Em todo caso, acho que saberemos evitar o cinema chato, o cinema comercial.
O que não significa que perderemos espectadores. Gostaria de fazer um filme que resultasse na perda de alguns espectadores e na aquisição de outros, novos, numerosos, espectadores.
Gostaria que nosso filme fosse visto por diversas pessoas, que não podem ser chamadas de espectadores de cinema.
P - Alguém me disse que você gostaria de mudar completamente a sua forma de fazer cinema. Isso é verdade?
AT - Sim, só que ainda não sei como. Seria bom, digamos, fazer um filme em total liberdade, como os amadores fazem seus filmes. Rejeite grandes financiamentos. Tenha a possibilidade de observar a natureza e as pessoas, e filmá-las, sem pressa.
A história nasceria de forma autônoma: como resultado dessas observações, não de planos oblíquos, planejados nos mínimos detalhes.
Esse filme seria difícil de realizar da maneira como os filmes comerciais são realizados. Teria que ser filmado em liberdade absoluta, independente da iluminação, dos atores, do tempo empregado na filmagem, etc., etc.
E com uma câmera de bitola reduzida. Acredito que tal método de filmagem pode me empurrar para ir muito mais longe.
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Andrei Tarkovsky. |
Link:
http://www.nostalghia.com/TheTopics/Tarkovsky_Guerra-1979.html
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