R.W. Fassbinder: Os filmes devem ser sedutores, bonitos e emocionar o público!

R.W. Fassbinder: Os filmes devem ser sedutores, bonitos e emocionar o público!

Rainer Werner Fassbinder, um dos mais brilhantes, talentosos e produtivos cineastas da história. Ele faleceu precocemente em 1982, aos 37 anos. Fassbinder dirigiu 44 filmes e também foi diretor de teatro e lançou livro de poesia. 

Rainer Werner Fassbinder entrevistado em 1974 pela revista 'Sight and Sound': “A necessidade primária é satisfazer o público”!

Matéria da revista 'Sight and Sound', de 1974!

Nesta entrevista de nossos arquivos, Fassbinder explica o desenvolvimento de seu pensamento sobre como fazer cinema político, as várias maneiras como ele combina realismo e estilização em seus filmes - e seu amor por Douglas Sirk.

Tony Rayns - Atualizado: 5 de junho de 2017, da 'Sight and Sound' 

De nossa edição de inverno de 1974 e reimpressa em formato editado em nossa edição especial sobre Fassbinder de Maio de 2017

Rainer Werner Fassbinder

Esta entrevista foi gravada no apartamento onde Rainer Werner Fassbinder estava hospedado em Frankfurt. Ele havia chegado recentemente à cidade para assumir a direção do Teater am Turm (‘Tower Theatre’) - um acordo que terminou abruptamente alguns meses depois.

RWF odiava Frankfurt e mais particularmente seus empregadores no conselho municipal, e descarregou sua raiva em uma nova peça chamada 'O lixo, a cidade e a morte' (Der Müll, die Stadt und der Tod), que o conselho imediatamente vetou.

RWF saiu do Teater am Turm, e a peça teve uma breve exibição em dezembro de 1974 no Schauspielhaus (obs: teatro) da cidade; foi posteriormente filmado (brilhantemente) por Daniel Schmid como 'Shadow of Angels' (Schatten der Engel, 1975), com RWF no elenco.

RWF sempre precisou de uma governanta para cuidar dele, e esse papel em Frankfurt foi preenchido por Ursula Strätz, proprietária do Action-Theatre original em Munique quando RWF assumiu sua liderança em 1967; A Sra. Strätz serviu chá na tentativa de acalmar o diretor dispéptico.

Sabendo que seu inglês era bastante fluente, comecei nervosamente a entrevista em inglês. Mas RWF interrompeu com "Ich verstehe gar kein Wort" ("Não entendo uma palavra disso") e então prosseguimos em alemão. A tradução aqui é minha.

Fassbinder e a sua musa, Hanna Schygulla, com quem trabalhou em inúmeros filmes. 

P - Quando você decidiu trabalhar no cinema e no teatro?

RWF - Cedo, por volta dos nove anos. Nunca houve qualquer outra possibilidade.

P - Você começou no teatro?

RWF - Não, fiz dois curtas em 1965 e 1966. Um surgiu do meu amor por 'Le Signe du lion' [1959] de Rohmer e o outro era ... um pouco como Godard. Mas naquela época todo idiota estava fazendo filmes. Senti uma grande necessidade de trabalhar com um grupo e tive acesso a este pequeno teatro ‘underground’ em Munique, onde poderia experimentar. Os filmes sempre foram tão caros ...

Nossa primeira peça foi 'Katzelmacher'. Só comecei a escrever porque os editores não queriam nos dar os direitos de atuação para o teatro; eles não viam nenhum lucro nisso. Nós nos tornamos 'antiteatro' quando a cidade fechou o lugar. A polícia entrou. Havia vários pretextos, mas principalmente porque se tornara um teatro político.

P - Como você voltou ao cinema?

RWF - 'Love Is Colder Than Death' [1969] foi feito quase inteiramente sem dinheiro; recebemos 10.000 marcos alemães de um colaborador e usamos isso. O filme 'Katzelmacher' foi feito a base de crédito. Não havia mercado para eles nos cinemas na época, mas vendemos os direitos deles para a TV, o que pagou nossas dívidas e deixou o suficiente para fazer 'Gods of the Plague' [1970].

Os filmes eram muito teatrais, assim como as peças que fazíamos eram muito cinematográficas. Achei que as coisas que estava alcançando com atores no teatro poderiam ser experimentadas no cinema; você descobre o que pode tirar de um meio para beneficiar o outro. Logo, porém, eu estava procurando por algo mais puramente cinematográfico.

Fassbinder era um grande admirador do cineasta Douglas Sirk, também alemão, a quem foi visitar na Suíça. A obra de Fassbinder foi influenciada pelos melodramas que Sirk dirigiu em Hollywood.

P - Você foi muito influenciado por filmes americanos então?

RWF - Algumas vezes. Cerca de metade dos primeiros filmes eram "sobre" minhas descobertas no cinema americano; de certa forma, eles transplantaram o espírito dos filmes americanos para os subúrbios de Munique.

Os outros geralmente não eram. Eram investigações sobre as realidades alemãs: trabalhadores imigrantes, a opressão de um trabalhador de escritório de classe média, nossa própria situação política como cineastas. 'Beware of a Holy Whore' [1970] é especificamente sobre a situação de tentar viver e trabalhar como um grupo.

P - Você achou isso provocativo?

RWF - Não tanto provocativo quanto projetado para ativar os processos de pensamento. Eu pensei então que se você trouxesse as pessoas contra a sua própria realidade, elas reagiriam contra ela.

Eu não acho mais isso. Agora acho que a necessidade primária é satisfazer o público e depois lidar com o conteúdo político. Primeiro, você tem que fazer filmes que sejam sedutores, bonitos, sobre emoção ou o que seja ...

P - Como Sam Fuller?

RWF - Por exemplo. Mas você ainda precisa saber porque está fazendo o filme. Em outras palavras, use as emoções geradas para um fim específico. É uma etapa preliminar em uma espécie de apresentação política.

A principal coisa a ser aprendida com os filmes americanos era a necessidade de atender ao fator entretenimento pela metade. O ideal é fazer filmes tão bonitos quanto os da América, mas que ao mesmo tempo desloquem o conteúdo para outras áreas. 

Acho que o processo começa nos filmes de Douglas Sirk, ou em um filme como 'Suspeita', de Hitchcock, em que você sai do cinema sentindo que o casamento é uma impossibilidade.

Rainer Werner Fassbinder, Werner Herzog e Wim Wenders, em reunião durante o Festival de Cannes, em 1982. Wenders realizou um filme durante o Festival, no qual entrevistou inúmeros cineastas, perguntando aos mesmos a respeito do futuro do Cinema. 

P - É por isso que você prefere melodrama ao realismo?

RWF - Não acho o melodrama ‘irrealista’; todos desejam dramatizar as coisas que acontecem ao seu redor. Além disso, todo mundo tem uma massa de pequenas ansiedades que tenta contornar para evitar se questionar; o melodrama vem com força contra eles.

Pegue um filme como 'Written on the Wind', de Sirk: o que passa na tela não é algo com que eu possa me identificar diretamente com a minha própria vida, porque é tão puro, tão irreal. E ainda dentro de mim, junto com minha própria realidade, torna-se uma nova realidade. A única realidade que importa está na cabeça do espectador.

Obs1: 'Written on the Wind' ('Palavras ao Vento; 1956).

P - Seus filmes são estilizados de uma forma muito diferente dos de Sirk, no entanto.

RWF - Claro, porque não fizemos filmes nas mesmas condições. Pelo menos metade de seus filmes contém a ingenuidade de seus chefes, os chefes do estúdio; para o bem ou para o mal, nunca tivemos isso. Essa é uma das coisas que são tão boas nos filmes americanos, e você quase nunca a encontra nos filmes europeus. Anseio por um pouco de ingenuidade, mas não há nenhuma por perto.

No entanto, existem diferenças consideráveis ​​entre meus filmes. O grau de estilização cresce em proporção com a artificialidade do tema. 'Effi Briest' [1974] é muito mais hermético do que 'Fear Eats the Soul' [1974] nesse sentido, por exemplo.

Obs2: 'Fear Eats the Soul' ('O Medo Consome a Alma').

O tema é parcialmente retirado da caracterização e, portanto, também tem a ver com os personagens. Os filmes são muito consistentes na atitude para com os personagens (hoje procuro dar a cada um uma motivação visível e compreensível), mas o que cresce depende muito do tema.

P - Você acha que isso está acontecendo em algum outro lugar da Alemanha?

RWF - Não vejo muito do que venho falando em outros diretores alemães; são algo bem diferente, com outras possibilidades. Tive a oportunidade de aprender muito mais do que a maioria deles. Sinto uma espécie de afinidade com Volker Schlondorff; ele e eu temos uma atitude um tanto semelhante em relação ao cinema e à vida.

Volker Schlondorff e Fassbinder foram dois dos principais nomes do Novo Cinema Alemão. 


P -
Por que você mantém uma 'sociedade por ações'?

RWF - O grupo está sempre se renovando. Gosto de trabalhar com as mesmas pessoas porque as possibilidades de acordo são muito melhores. Caso contrário, você estará sempre voltando ao início.

P - Você pretende construí-los como 'estrelas'?

RWF - Para mim são estrelas.

P - Você tenta manter a mesma equipe junta também?

RWF - Sim, mas não é tão permanente quanto com os atores. Eles fazem muito trabalho para a TV e trabalham para outros diretores, e não dá para ter a mesma continuidade. Mas eu só usei três câmeras, por exemplo, e de qualquer forma, sempre verifico todas as cenas sozinho.

P - Que tal o design?

RWF - Eu mesmo fiz o de 'Petra'. Caso contrário, é feito para mim por Kurt Raab, o cara que interpreta Haarmann em 'Tenderness of the Wolves', de Ulli Lommel. Eu digo a ele o que preciso; cada cor é cuidadosamente pensada, cada imagem é preparada.

P - O papel de um ator em um filme se relaciona com o papel dele em outro?

RWF - Há vários anos venho tentando uma variedade extrema; a diferença entre 'O Mercador das Quatro Estações' [1972] e Petra von Kant [As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, 1972] já é muito grande.

Nos últimos filmes, isso tem mudado constantemente: 'Effi Briest' com Hanna Schygulla, 'Martha' com Margit Carstensen, 'Fear' com Brigitte Mira. Com Hanna, por exemplo, toda vez que tentamos pegar qualquer coisa que a personagem tem a ver com sua própria personalidade e iluminar do outro lado.

P - Por que alguns de seus projetos são originais e outros baseados em textos existentes?

RWF - Se eu encontrar uma história que é melhor planejada do que eu mesmo poderia ter feito, então eu a uso. Eu fiz 'Effi Briest' porque a atitude de Fontane em relação à sua sociedade era muito parecida com a minha, e eu sou um alemão, fazendo filmes para o público alemão.

Margarethe von Trotta e Fassbinder em cena do filme 'Baal' (1970), de Volker Schlondorff. 

P - No entanto, um filme como 'Merchant' tem uma certa universalidade…

RWF - Sim, é uma história que quase todo mundo que conheço viveu a si mesmo. Um homem deseja ter feito algo de sua vida que nunca fez. Sua educação, seu ambiente, suas circunstâncias não admitem a realização de seu sonho.

P - Petra parece, em contraste, mais privada ...

RWF - Ah, mas não é, as pessoas podem se identificar e ter feito isso. Porque, mais uma vez, é o mesmo assunto: todos experimentaram dor no amor e desejaram (naturalmente) um amor maior do que era possível ... a maioria das pessoas sofre porque são incapazes de realmente expressar sua dor.

P - Era originalmente uma peça?

RWF - Sim, mas não acho um filme particularmente teatral. A questão é que a mulher nele se coloca em uma situação tipo teatral. Você usa tomadas muito longas. Estava fortemente ligado à atuação. 

Calculamos que tal ou qual seção fosse uma sequência para a atriz e deveria ser ininterrupta para que ela pudesse se mover por ela. Essa foi a primeira ideia que rege a estrutura do filme, desde a ideia dramática original.

P - Você disse que não conhecia 'All That Heaven Allows', de Sirk, quando contou pela primeira vez a história de 'Fear' na trilha sonora de 'An American Soldier'. Foi uma surpresa descobrir isso?

RWF - Não, eu estava tão afinado com o Sirk que nada me surpreendeu. Sirk contou muitas histórias que eu gostaria de ter contado. 

[In Fear Eats the Soul] é apenas uma questão de uma história semelhante; os filmes são produtos de diferentes circunstâncias. Sirk é uma espécie de conto de fadas; a minha também, mas da vida cotidiana. Sirk teve a coragem simplesmente de contar a história. Provavelmente não confiei em mim mesmo simplesmente para fazer isso.

Mas eu queria fazer isso há anos ... Eu não tinha uma atriz para isso até que conheci Brigitte Mira e percebi que ela poderia fazer isso. É a história de duas pessoas que estão praticamente na mesma situação, que têm os mesmos motivos para se reprimir.

Alexander Kluge e Fassbinder: Kluge foi um dos responsáveis por escrever o 'Manifesto de Oberhausen', em 1962, que foi o ponto de partida do Novo Cinema Alemão, do qual Fassbinder tornou-se um dos principais nomes.

P - Por que você usou esses fadeouts enfáticos no filme?

RWF - Achei que estavam certos, eram adequados para o tipo de história que era. Eles realmente apenas separam eventos e determinam a passagem do tempo. A mesma coisa é levada ao extremo em 'Effi Briest'.

P - Como você se sentiu atuando em um filme como 'Ternura dos Lobos', obviamente influenciado pelo seu próprio trabalho?

RWF - Muito corajoso. Ulli Lommel e eu tínhamos trabalhado muito juntos antes disso, e estava claro que ele absorveria parte disso. Mas seu método de trabalhar com atores é bem diferente do meu.

P - Qual é o filme que você acabou de rodar?

RWF - Fox [Fox and His Friends, 1975]. É um filme sobre capitalismo. A história de um ganhador de loteria e de como ele perde seu dinheiro.

P - Você está planejando trabalhar mais no teatro?

RWF - Sim, estou tentando fazer experiências com um grupo novamente. No teatro me interesso mais pelo trabalho, pelo processo de criação. No cinema, mais no resultado. O teatro tem um público diferente, menor, mais especializado.

P - E a sua série de TV [Oito Horas Não Fazem um Dia], no outro extremo do público?

RWF - Sobre isso, eu teria que dizer novamente o que já disse sobre os filmes. Você sabe que tem 23 milhões de espectadores e tenta encontrar denominadores comuns para um público tão grande, para ancorar o cenário político.

P - Você repetiria a experiência?

RWF - Se eu já não tivesse feito, eu o faria.

P - Isso significa que você simplesmente queria experimentar outra linguagem?

RWF - Não, acho que TV é a coisa mais importante que se pode fazer.

Fassbinder e alguns dos membros da sua trupe, com os quais trabalhou em muitos filmes: Ingrid Caven, Gunther Kaufmann, Harry Baer, Hanna Schygulla (abraçada por Fassbinder) e Kurt Raab. 

*****************

Na edição de maio de 2017 da 'Sight & Sound'

Obsessões magníficas: o gênio explosivo de Rainer Werner Fassbinder

A carreira extraordinária do prolífico diretor alemão Rainer Werner Fassbinder, que morreu de overdose com apenas 37 anos, continha multidões. Em 14 páginas, damos uma olhada em alguns dos temas que definiram seu talento inconstante:

- Obsessões magníficas: uma introdução de Martin Brady;

- The Outsider: Tony Rayns escreve sobre o fascínio de RWF pela "alteridade";

- The Mirror to Germany: Martin Brady escreve sobre as raízes de RWF em Munique e sua relação com o Novo Cinema Alemão;

- O Esteta: Margaret Deriaz escreve sobre a atitude de RWF em relação à arte;

- The Ladies ’Man: Erica Carter analisa o uso instrumental de figuras femininas por RWF;

- A vítima e o vitimizador: Elena Gorfinkel escreve sobre a centralidade da sujeição, humilhação e interdependência na visão de mundo de Fassbinder;

Harry Baer, Margit Carstensen, Hanna Schygulla, Irm Hermann, Juliane Lorenz (5 intérpretes que trabalharam com Fassbinder), Thomas Schuhly e Annekatrin Hendel no lançamento do documentário 'Fassbinder' (2015), dirigido por Annekatrin. 

- The Formal Innovator: Mattias Frey escreve sobre os experimentos de RWF em teatro, cinema e televisão;

- O colaborador: Tony Rayns escreve sobre a tirania de RWF sobre suas tropas;

- The Stylist: Andrew Webber escreve sobre os vários modos de expressão estética de RWF;

+ “A necessidade primária é satisfazer o público”.

Nesta versão editada de uma entrevista de 1974 à 'S&S', Fassbinder discute suas primeiras explorações da realidade cotidiana da vida alemã e como o cinema americano influenciou seu trabalho. Por Tony Rayns.

+ “Era para ser mais pessimista”

A restauração da minissérie de TV de Fassbinder de 1972, 'Oito Horas Não Fazem um Dia', permite que uma nova geração desfrute de um clássico que se equipara ao melhor trabalho do diretor. Por Nick Pinkerton.

'Sight and Sound': Edição de Maio de 2017:

O gênio explosivo de Rainer Werner Fassbinder: um tributo de 14 páginas.

Rainer Werner Fassbinder (1945-1982).

Link:

https://www2.bfi.org.uk/news-opinion/sight-sound-magazine/interviews/rainer-werner-fassbinder-1974-primary-need-satisfy-audience

Obs: Todos dizem que Fassbinder dirigiu 44 filmes. Mas entre estas 44 produções nós temos 2 séries de TV que, somadas, chegam a 7 episódios, com cada um tendo entre 90 e 105 minutos de duração. Então, no total nós podemos afirmar que Fassbinder dirigiu 49 produções. As duas séries de TV são "Welt am Draht" (O Mundo Por um Fio; 1973), de ficção-científica, e ''Acht Stunden sind kein Tang" ('Oito Horas Não São Um Dia'; 1972-1973). 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Godard, em entrevista, em 1962: 'Eu sabia que 'Viver a vida' deveria começar com uma garota vista de trás – não sabia porquê'!

'Person of Interest' - Comentando o episódio 'One Percent' (2X14)!

O final de 'Taxi Driver' - Afinal, Travis Bickle morreu ou não?