Macha Méril: Jean-Luc Godard foi um gênio e um gigante do século!

Macha Méril: Jean-Luc Godard foi um gênio e um gigante do século! - Marcos Doniseti!

Godard e Macha Méril no set de 'Une Femme Mariée' (1964), um belo e subestimado filme do mestre. O filme foi feito em apenas um mês, Julho de 1964, para que pudesse ser inscrito na competição oficial do Festival de Veneza daquele ano, que foi realizado entre 27/08 e 10/09 de 1964.

Esta é uma entrevista concedida pela atriz francesa Macha Méril, que trabalhou com Godard em 'Une Femme Mariée' (Uma Mulher Casada; 1964), e que foi publicada no site da "L'Ilustré", em setembro de 2022, poucos dias após o falecimento de Godard.

Macha Méril que chegou até a escrever um livro sobra a sua participação no filme (no qual interpretou Charlotte, a protagonista) faz comentários extremamente interessantes sobre Godard e a maneira como ele trabalhava. O título do livro é 'Journal de Une Femme Mariée' ('Diário de Uma Mulher Casada').

Texto da matéria!

Em 13 de setembro em Rolle (Cantão suíço de Vaud), o cineasta optou por ir embora, aos 91 anos, recorrendo à morte assistida. A atriz e escritora Macha Méril havia filmado com ele e o conhecia bem. Ela lhe presta uma bela, sincera e picante homenagem.

por Julie Rambal, da "L'Illustré", publicado em 21 de setembro de 2022

Ela filmou com Michel Deville, Eric Rohmer, Luis Buñuel, Agnès Varda, Rainer Werner Fassbinder e muitos outros. Ela também filmou com Jean-Luc Godard, numa época em que a emergente sociedade de consumo bombardeava as mulheres com mensagens sobre a felicidade do casal, sobre robôs domésticos.

Macha Méril, atriz e escritora maravilhosa, ferozmente livre, guarda uma lembrança ardente de seu encontro com um "gênio do século", em suas próprias palavras.

Macha Méril interpreta a protagonista de 'Une Femme Mariée'. Ela tinha apenas 23 anos na época do filme e escreveu um livro sobre o seu trabalho no mesmo.

P - Você trabalhou com muitos cineastas, o que você lembra de Jean-Luc Godard?

Macha Méril - Ele é um gigante do século. De vez em quando, há artistas como ele que vêm para esmagar as ideias convenientes em que as sociedades se estabelecem. E a genialidade de Godard é ter escolhido o cinema. Ele entendeu o poder das imagens e como elas invadiriam o mundo.

Ele sentiu muitos grandes temas, e que é a poesia que é poderosa. Ou seja, não basta ter as ideias certas, e ser da época, quando se faz um filme, também é preciso encontrar a linguagem. E ninguém poderia filmar da mesma forma depois dos filmes de Godard. Com ele, tive a sensação de ser observada um pouco mais de perto.

P - Vocês filmaram juntos "Uma mulher casada", em 1964. Como aconteceu essa colaboração?

Macha Méril - Como sempre com ele, filmamos em um tempo muito curto, sem roteiro, mas ainda com trechos de texto que ele nos deu no último minuto. Às vezes eram trechos de romances ou frases retiradas de folhetos publicitários.

Jean-Luc Godard inventou uma forma de fazer cinema, mas também uma forma de tratar os atores. Não tenho certeza se ele gostou muito deles, ele não se importou nem um pouco.

'Diário de Uma Mulher Casada' é o livro escrito por Macha Méril sobre a sua participação em 'Une Femme Mariée'.

Acima de tudo, escolheu plásticos, rostos, olhares, pessoas que pudesse filmar. E ele viu que eu estava muito disponível, ainda por cima me filmou de todos os ângulos. Mesmo quando não estou, tem meu pé, meu joelho, um ombro, um pedaço, porque é uma placa entomológica de mulher.

P - Que lembranças você tem das filmagens?

Macha Méril - Eu vivia numa espécie de transe. São momentos extremos, como o amor. E é um acontecimento que ainda perdura, porque o filme não envelheceu nem um pouco por causa da forma. Ele havia frequentado uma escola de design gráfico em Zurique, com um domínio muito forte das imagens.

E é um filme extremamente plástico, cada tomada é uma pintura. Por exemplo, em um ponto, quando estávamos filmando com a câmera atrás de mim, ele bateu no suporte da câmera, de modo que ficou um pouco fora.

Poderia ter sido apenas estético, mas essa imagem estranha, não exatamente no lugar, estava se tornando poderosa.

Cena de 'Une Femme Mariée' e na qual a personagem Charlotte parece simular uma situação de êxtase sexual. Em função de cenas como essas os setores conservadores disseram, na época, que o filme de Godard era 'um atentado contra a moral e os bons costumes'.

Cada artista tem seus lampejos que ele mesmo não entende, e tenho certeza que Godard não sabia de onde vinha toda essa força. Ele era um carinha não muito bonito, eu não teria tido um caso com ele porque meu fascínio não era por ele, mas pelo filme que estávamos fazendo e que a sociedade precisava.

P - Na época, a comissão de censura decretou o filme pornográfico. Para que?

Macha Méril - Alguém me perguntou um dia se eu teria aceitado que ele filmasse meu sexo e eu respondi que sim. Se ele tivesse me perguntado, isso significava que era necessário para o filme. Em 1964, era o século XIX. Não havia pílula, nem interrupção da gravidez, nem teste de DNA.

Este filme é a história de uma jovem que tem marido e amante, faz a mesma coisa com os dois, e depois fica grávida e vai ao ginecologista para perguntar quem é o pai.

E o cara era um ginecologista de verdade que Jean-Luc equipou com um microfone para fazer perguntas nos bastidores. E o ginecologista não teve resposta. Na época, mulheres meio privilegiadas iam fazer aborto no exterior – para mim, era na Suíça – ou sozinhas com agulhas de tricô.

Godard e Macha Méril no set de filmagem de 'Une Femme Mariée'.

P - Quais cenas foram censuradas?

Macha Méril - O filme mudou de título. Chamava-se “A Mulher Casada”, mas pediram-lhe que a chamasse “Uma Mulher Casada”, o meu personagem debochado não sendo capaz de encarnar todas as mulheres. Alguns planos também foram removidos.

Godard era inteligente, os tinha filmado de propósito. Em uma, estou de perfil, cortando a franja, aí abaixo a cabeça e você ouve o barulho de uma tesoura, como se eu estivesse cortando pelos pubianos. Eles cortam o barulho da tesoura. Nenhuma referência aos pelos pubianos.

As meninas da geração mais jovem precisam entender o que passamos quando tínhamos 20 anos. Ele fez um filme sobre isso. E devemos muito a ele, porque ele criou personagens que honraram a mulher moderna.

Nós éramos mulheres crisálidas, mulheres que iam se tornar aquelas que agora começam a entrar em todas as profissões, governar. Mas na época, não era nem uma pergunta. Éramos um povo submisso e alienado.

E tudo isso por meio de iniciativas como os filmes de Jean-Luc Godard.

A jovem e bela Macha Méril interpreta Charlotte, uma mulher casada que tem um amante e fica na dúvida com quem ela deve continuar o relacionamento. O filme termina sem que saibamos qual foi a decisão dela.

P - Na obra de Jean-Luc Godard, lembramos especialmente das mulheres. O você pensa a respeito?

Macha Méril- Dizem que ele era misógino, mas veja como ele filmava mulheres. Ele pode ter sido um pouco arrogante, calvinista, e não era um homem que se interessasse muito por mulheres, mas em seu trabalho, as mulheres de Godard são maravilhosas. Ele filmou mulheres, exaltou os corpos das mulheres e entendeu esse enigma extraordinário que era a escravidão das mulheres.

Ele queria colocar o dedo nisso para que pudéssemos tomar o poder.Movimentos feministas já existiam, claro, mas também abriam portas.

No filme que fiz com ele, você vê uma mulher bombardeada pela publicidade, pela banalidade dos outros e por tudo que falam para ela, mas não cabe. Algo nela resiste. É uma forma de dar a possibilidade de não se deixar levar.

P - Então porque ele recebeu esse rótulo de misógino?

Macha Méril - Porque ele mesmo não era terno. Ele não era legal com ninguém. Mas um gênio não precisa ser legal, você não pede para ele ser legal. Ele estava em outro mundo, seu cérebro funcionava dez mil vezes mais rápido que o nosso. Você não pode competir com essas pessoas, e elas são pessoas infelizes.

Macha Méril cortando o cabelo e os pelos do corpo (incluindo os pelos das partes íntimas) em cena de 'Une Femme Mariée'.

Jean-Luc não via ninguém. Ele fez cinco filmes com Michel Legrand e nós o convidamos para o nosso casamento. E você pode imaginar que queríamos muito que ele viesse, pelo menos para ele responder, mas nada.

Também experimentei isso com Marguerite Duras, a única entre os escritores de quem me aproximei que pudesse comparar com Godard. Ela sofria na carne com tudo o que lhe parecia ignóbil no mundo e não sabia dizer por que escrevia.

Muitos não gostaram de Godard e disseram: “Estamos entediados”.

Mas grandes cineastas, procurando maneiras de dizer o que há de errado com o mundo, são poucos. É realmente uma grande personalidade que nos deixou.

Obs: Descubra "O homem de Nápoles" (Ed. de l'Archipel): Um livro no qual Macha Méril narra sua paixão com o fotógrafo Luciano D'Alessandro, e as fotos deste último, que ela descobriu quarenta anos depois.

Macha Méril em 'Une Femme Mariée'. Esta cena foi parcialmente censurada na França na época do lançamento, pois neste momento ela estava cortando os seus pelos pubianos.

Links:

Entrevista com Macha Méril:

https://www.illustre.ch/magazine/macha-meril-jean-luc-godard-vivait-dans-un-autre-monde-532830

Trailer do filme: