'Alphaville' e 'Blade Runner'! E se Godard influenciou Ridley Scott? – Pílulas de ficção científica!
'Alphaville' e 'Blade Runner'! E se Godard influenciou Ridley Scott? – Pílulas de ficção científica! - por Mario Vannoni!
Godard e Ridley Scott!
por Mario Vannoni, do 'The Macguffin', 23 de agosto de 2020
Fica claro e bem conhecido de quem conhece um mínimo de história do cinema a importância essencial que um diretor como Godard tem na história da cinematografia mundial. Quase todo mundo, porém, pensa que essa aura de lenda se desenvolve e termina na corrente da Nouvelle Vague - da qual Godard é substancialmente o fundador, junto com Truffaut.
Por outro lado, muitos ignoram que a relevância do diretor franco-suíço vai muito além da destruição das regras cinematográficas, chegando a influenciar todo o cinema moderno.
O que pode soar ainda mais estranho é ouvir que Godard influenciou – e mal – a ficção científica. Mas vou te contar mais: o diretor, se não inventou, certamente foi um dos precursores do Cyberpunk.
A Nouvelle Vague foi uma corrente que, de tempos em tempos, se interessava por diversos gêneros cinematográficos, para revisitá-los, remixá-los, revolucioná-los. A metade da década de 1960 foi uma época em que os cineastas do movimento estavam particularmente interessados no Noir.
Obviamente, no cinema americano da época já havíamos entrado na fase Neo-noir (ver, por exemplo, 'Ascensor para o Cadafalso', de Louis Malle, de 1957) e Godard também em certo sentido já havia tocado o gênero com filmes como "Acossado' ou 'Le Petit Soldat'.
Mas, vindo do futuro de maneira semelhante a Kanye West, o diretor teve o insight final. E assim, em 1965, ele fez o agente 'Lemmy Caution: Mission Alphaville'.
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Anna Karina interpreta Natasha von Braun em 'Alphaville'. |
Algumas considerações preliminares…
O personagem Lemmy Caution foi baseado naquele criado pelo escritor Peter Cheyney e já havia sido submetido a várias adaptações cinematográficas, todas protagonizadas por Eddie Costantine, que obviamente também protagoniza o filme de Godard. As histórias de Lemmy Caution eram essencialmente Noir, como os filmes baseados nelas.
Nosso Jean-Luc, por outro lado, decidiu ir mais longe.
O diretor traça um enredo que incorpora muitos dos traços estilísticos do Noir clássico, mas os inverte, transformando Lemmy Caution em uma paródia de si mesmo. Ao fazer isso, Godard elimina o conflito moral típico do anti-herói noir e devolve um personagem que não tem interesse em ser herói: ele atira, sem hesitar. Nesse sentido Eddie Costantine é perfeito: frio, cínico, duro, de cara e de fato.
Mas vamos ao que interessa…
A intuição fundamental de Godard era definir sua história no futuro, tornando-a, para todos os efeitos, um filme de ficção científica. Alphaville é uma cidade controlada por um supercomputador ditatorial que submeteu todos os habitantes às leis da racionalidade e da lógica. Um pouco como os neopositivistas. Os jesuítas estão batendo na minha porta para me açoitar.
Vamos parar por um momento.
Além da óbvia referência ao Big Brother de Orwell – no qual praticamente todas as distopias de ficção científica são inspiradas ('Brazil', por exemplo) -, parece-me bastante claro que Kubrick se inspirou pelo menos no Alpha 60 (o supercomputador) em criação de seu HAL 9000 em '2001 - A Space Odyssey'.
As pessoas que vivem em Alphaville são, assim, roubadas de tudo o que normalmente caracteriza um indivíduo: caráter, paixões, inclinações, vontade e capacidade de sentir emoções e assim por diante.
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Sean Young interpreta a replicante Rachel em 'Blade Runner' (1982). |
Isso é possível graças ao controle distópico e ditatorial que 'Alpha 60' exerce, que me parece ter influenciado de maneira plausível Matrix em sua reflexão sobre os limites dos indivíduo em suas possibilidades de ser mantido sob controle.
Além disso, Godard também se inspira em 'Metropolis' de Fritz Lang (gênese da ficção científica cinematográfica) no cenário – com esses enormes blocos de torre cheios de vidro – e no fato de que, uma vez adulterado o supercomputador, a cidade cai em caos, como de fato também acontece em 'Metropolis'.
Mas as referências ao filme de Lang são abundantes: o renascimento de uma certa tendência fotográfica expressionista (que em todo caso se deve principalmente ao cenário Noir), o robô/mulher automatizada, mas em particular Lang inspirou o tema central do filme ou seja, o amor.
Aliás, o slogan recorrente de Metropolis é justamente “o mediador entre o cérebro e as mãos deve ser o coração”, enquanto o filme de Godard termina com as palavras “eu te amo”.
O amor nos leva ao ponto principal deste artigo. Lemmy Caution durante o filme se apaixona pela personagem interpretada por Anna Karina, a mulher-robô. Que filme lhe traz à mente? Eu sei que você sabe, mas se não sabe eu te conto: Blade Runner.
Anna Karina (Natasha von Braun) e Eddie Constantine (Lemmy Caution) em 'Alphaville' (1965).
De volta ao noir…
Aguarde a declaração forte: Blade Runner é o que agente Lemmy Caution potencialmente continha. Agora vou me explicar, antes de me tornar seu Vespasiano pessoal.
Blade Runner é provavelmente o filme Neo-noir mais conhecido, timidamente seguido talvez apenas por 'Sin City'. Como vimos anteriormente, entretanto,
Godard quase inventa o Neo-noir ou, em todo caso, contribui decisivamente para estruturar suas regras cinematográficas.
Porém, o grande mérito de Ridley Scott - entre outras coisas - foi inventar a estética Cyberpunk.
Mas assim como, na minha humilde opinião, nunca teria havido 'Alien' sem 'Terror in Space', também acho que nunca teria havido 'Blade Runner' sem Lemmy Caution.
Não estou querendo dizer que Ridley Scott só é bom em copiar, pelo contrário: o que quero dizer é que o diretor americano é um excelente assimilador de instâncias culturais que soube retrabalhar do ponto de vista pessoal e autoral, contribuindo para a definição de uma estética.
Harrison Ford (Deckard) e Sean Young (Rachel) em 'Blade Runner' (1982).
Posto isto, é impossível não reparar nas semelhanças que caracterizam as duas obras.
Primeiro o cenário Neo-noir/distópico/futurista, depois o policial protagonista, a relação amorosa entre Harrison Ford e o replicante, mas também a estética em si, com essa iluminação contrastante, os enormes blocos de torres e esses grandes sistemas de controle populacional.
Crucial, no entanto, é o fato dos dois filmes abordarem temas muito semelhantes, embora os descrevam de formas distintas: da alienação do indivíduo a um olhar sobre a modernidade, passando por uma reflexão sobre a consciência e chegando finalmente ao papel do amor na resolução de relacionamentos.
Tanto Blade Runner quanto Lemmy Caution, aliás, resumem sua mensagem na intervenção de um personagem, o replicante Roy em Blade Runner e Natascha von Braun no filme de Godard, ambas criaturas que a princípio se pensa não terem consciência, mas que no final o filme, justamente com suas falas finais de diálogo e através do amor, eles recuperam a consciência de serem indivíduos.
O cientista Leonard von Braun, criador do 'Alpha 60', em cena de 'Alphaville'.
Só para concluir e não ser mal interpretado.
Não era para ser uma competição entre Scott e Godard, mas sim uma forma de mostrar como, sem o diretor da Nouvelle Vague, não há cinema moderno.
O fato de retomar autores ou tendências do passado não é algo que desvalorize a obra resultante: todos o fazem, é impossível não o fazer e é a única forma de a arte progredir e avançar; uma arte auto referencial e fechada esgota seu escopo inovador cedo demais para afetar a sociedade.
E não, não é isso que significa a arte pela arte.
Nunca teria havido um Godard sem cinema clássico americano, sem Hitchcock e sem Rossellini, assim como nunca teria havido Star Wars sem Kurosawa e ainda não haveria Kurosawa sem Shakespeare e Dostoiévski. Em suma, você entende.
Por outro lado, é impossível não reconhecer o valor de Ridley Scott na redefinição da ficção científica moderna e na criação do Cyberpunk a nível estético, sem contar os seus inúmeros outros méritos.
Em resumo, trate seu cérebro como um rizoma.
O dr. Eldon Tyrell, criador dos replicantes em 'Blade Runner' (1982), cuja aparência é muito semelhante à do cientista Leonard von Braun de 'Alphaville'.
LINKS:
https://www.themacguffin.it/godard-influenzato-ridley-scott-pillole-di-fantascienza/
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