Blade Runner: Saiba como Rutger Hauer alterou o monólogo final e expandiu o conceito do filme!

Blade Runner: Saiba como Rutger Hauer alterou o monólogo final e expandiu o conceito do filme!  - Marcos Doniseti!

A brilhante atuação de Rutger Hauer em 'Blade Runner' foi coroada com um monólogo final de sua autoria que mudou a natureza do seu personagem e expandiu o conceito do filme.

É conhecido o fato de que o brilhante ator holandês Rutger Hauer, falecido em Julho de 2019, aos 75 anos, modificou quase que inteiramente a fala do seu personagem (Roy Batty), na belíssima, emocionante e inesquecível sequência final de 'Blade Runner' (1982).

'Blade Runner' foi baseado em um livro do genial Philip K. Dick, que é 'Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?', que possui um tema central, baseado na questão 'O que é que nos torna humanos?'.  

Mas, no filme de 1982, o roteiro original simplificou a trama do livro, focando na questão do tempo de vida dos Replicantes, que passam a desejar viver por muito mais tempo do que a programação deles prevê, que é de apenas quatro anos.

O tempo de vida limitado foi adotado pelo Dr. Eldon Tyrell para evitar que os Replicantes se tornassem mais complexos e evoluídos no aspecto emocional, o que impediria que eles fossem descobertos, pois fisicamente eles eram semelhantes aos humanos em tudo. 

Afinal, os Replicantes demonstram capacidade de chorar, dar risada, amar. E o filme também tratou da possibilidade de que Deckard pudesse ser um Replicante. 

Desta maneira, o monólogo que Rutger Hauer escreveu para o seu personagem (Roy Batty) acabou aprofundando essa questão, sobre a natureza humana, levando a mesma para um patamar mais elevado, pois a sequência final comprova que não havia mais diferenças entre Replicantes e Humanos.

Rick Deckard (Harrison Ford) em cena do icônico filme 'Blade Runner' (1982).


Na trama do filme, cuja história se desenvolve em 2019 (no livro os fatos ocorrem em 1992), a Terra é um planeta devastado, com cidades em uma situação caótica, pois ocorreu uma guerra nuclear, e as elites do planeta fugiram para viver em Marte e em outros planetas, onde elas contam com os Replicantes como escravos que fazem todos os trabalhos. 

Somente os setores marginalizados, indesejáveis e doentes da população é que ficaram vivendo nesse planeta devastado, sendo bastante afetados pelo clima terrível e pelo ambiente mortal do planeta, que não tem mais ar puro, água limpa, florestas, animais. Enfim, o ambiente e a natureza da Terra foi destruído.

Assim, um grupo de Replicantes, cansados de serem escravizados e querendo viver mais tempo, se rebelam e matam alguns humanos. 

Depois disso o grupo fugiu para a Terra, em busca do seu criador, o Dr. Eldon Tyrell, para que o mesmo promovesse uma alteração neles (na sua programação ou, digamos, no seu 'DNA'), pois eles queriam viver por um período maior de tempo. 

No filme, a cidade de Los Angeles é mostrada com um visual futurista que, posteriormente, influenciou a quase todos os filmes de Ficção Científica que foram realizados. 

O livro de Philip K. Dick, 'Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?', é um clássico da literatura de ficção-científica. O título do filme veio de um livro de autoria de William Burroughs, um dos três grandes nomes da Beat Generation, junto com Allen Ginsberg e Jack Kerouac.


E
 no filme também temos um Caçador de Replicantes, Rick Deckard (Harrison Ford), que está perseguindo, caçando, aos vários Replicantes fugitivos (Roy Batty, Pris, Zhora, Kowalski...)

E como eu já afirmei, a fala final de Roy Batty, que foi bastante modificada por Rutger Hauer, alterou a natureza do seu personagem que, de certa maneira, comprova o seu caráter humano que, até então, era algo incerto. 

E com essa mudança no monólogo, Hauer também expandiu o próprio conceito original do filme. 

Como assim? 

Bem, para entender a mudança que Hauer promoveu no monólogo final do filme, e que não foi pequena, é necessário comentar um pouco sobre Mitologia Grega e Astronomia. 

O monólogo de Rutger Hauer ficou assim:

"Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Naves de ataque em chamas no ombro de Orion. Eu vi Raios C brilharem no escuro perto do Portão Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. É hora de morrer.".

Do conteúdo original do monólogo de Roy Batty, segundo Hauer, ele somente aproveitou as referências aos 'Raios C' e às 'Naves de Ataque'. O restante do texto foi de sua autoria.

A Constelação de Orion também é chamada de Constelação do Caçador, por razões óbvias. 


Rutger Hauer explicou a razão da mudança no monólogo dizendo o seguinte: 

"Para mim, as falas finais tinham que deixar claro que Roy queria deixar uma marca de sua existência na Terra... Na sua última cena, o Replicante, ao morrer, mostra para Deckard o que significa ser um humano de verdade".

E entre as referências que Hauer acrescentou ao monólogo está aquela que cita a Constelação de Orion ('No ombro de Orion'). Nesta constelação nós temos inúmeras estrelas e a forma da mesma lembra, claramente, a de um Caçador. 

Na Mitologia Grega, Orion (que seria Roy em 'Blade Runner') era um caçador gigante que foi colocado nas estrelas por Zeus (Dr. Eldon Tyrell). É bom lembrar que, na sequência final, o Roy é que passa a caçar Deckard, tornando-se o caçador. 

E Orion também se tornou arrogante e prometeu matar a todos os humanos, mas a deusa Gaia (Deusa da Terra) enviou um escorpião gigante (Rick Decard no filme) para destruí-lo. Assim, o caçador Orion foi morto e, depois, foi colocado, junto com o escorpião, entre as estrelas. 

Assim, esta narrativa mitológica resume a trama de 'Blade Runner' (1982).

Na constelação de Orion nós temos duas estrelas que aparecem logo acima, que estariam nos ombros do Caçador, que são Bellatrix (no ombro direito) e Betelgeuse (no ombro esquerdo), o que explica a frase incluída por Hauer. 

A estrela de Betelgeuse é uma supergigante vermelha, que brilha intensamente, mas que terá um período de existência muito inferior ao de Bellatrix, que brilha com menos intensidade, mas que irá existir por um período de tempo bem maior.

Rachael e Rick Deckard se apaixonam em 'Blade Runner'. No filme seguinte, 'Blade Runner 2049' (Dennis Villeneuve, 2017), ficamos sabendo o que aconteceu com os dois. 


E de que maneira essa referência, incluída no roteiro por Hauer, se conecta com a história do filme? 

É que no monólogo final o Hauer fala de 'naves de ataque' sobre o seu ombro. É mais do que evidente de que ele se refere às duas estrelas, Betelgeuse e Bellatrix, que estão sobre os ombros do Caçador na Constelação de Orion. E os 'Raios C' são os raios de sol que são emitidos por ambas. 

Oras, o próprio Hauer disse que não havia referências à Constelação de Orion no roteiro original. Portanto, com as mudanças que fez, ele é que transformou as duas estrelas em 'naves de ataque', que são as armas do Caçador. 

E no filme, o que nós temos? Um 'Caçador de Replicantes' (Deckard) que usa de armas para eliminar aos mesmos. 

Mas existe uma grande diferença entre as duas estrelas (Betelgeuse e Bellatrix). Uma delas existirá por menos tempo, mas brilhará mais intensamente, que é a supergigante vermelha Betelgeuse. E uma das falas do Dr. Tyrell diz exatamente isso sobre o replicante Roy, que ele brilhou intensamente, mesmo vivendo por pouco tempo.

Portanto, em 'Blade Runner', a estrela Betelgeuse representa Roy e os Replicantes. 

Enquanto isso, é claro, a estrela Bellatrix, que brilha menos e existirá por mais tempo, representa os seres humanos, que vivem muito mais tempo do que os Replicantes.

Roy Batty e Rick Deckard se enfrentam na belíssima sequência final. Ao falar das situações que vivenciou e de como isso o afetou o replicante Roy mostrou para Deckard que o trabalho deste, de caçar e eliminar os Replicantes, não tinha mais sentido, pois não existiam mais diferenças entre os Replicantes e os Humanos.  


Oras, no final, o monólogo de Roy mostra que ele viveu intensamente e que guardou as memórias de tudo o que vivenciou, chegando a se emocionar e a chorar com isso. Portanto, ele fez a transição da condição de Replicante para a condição de Humano, o que não estava previsto no roteiro original do filme. 

Enquanto isso, os seres humanos brilham menos do que os Replicantes, pois eles estão passando por um processo de desumanização. Eles esqueceram o que significa ser um humano. 

Portanto, ao promover alterações tão significativas no monólogo final de Roy, o grande ator Rutger Hauer promoveu uma mudança na condição dos Replicantes e, ao fazer isso, mudou e expandiu o próprio conceito original do filme, que não previa tal mudança. 

A luta dos Replicantes fugitivos no filme é, justamente, pedir por mais tempo de vida, para se tornarem iguais aos humanos, pois nos outros aspectos (físicos, emocionais e mentais) eles já se viam como sendo humanos e não entendiam porque eram caçados e eliminados daquela forma. 

Essa transição de Replicante para Humano não fazia parte do roteiro do filme, que até aquele momento que antecede ao monólogo, limitava-se a mostrar os Replicantes querendo viver por mais tempo e com o Rick Deckard caçando e eliminando aos mesmos. Nada além disso. 

De fato, os roteiristas transformaram a história do livro de Philip K. Dick, que possui um caráter altamente místico e filosófico, em um filme Policial Noir cuja história se desenvolve em um futuro distópico. 

Porém, de acordo com o roteiro original, os Replicantes não tinham a intenção de se tornarem humanos. Eles queriam mais tempo de vida. 

Foi o Rutger Hauer que fez com que Roy fizesse essa transição de androide para a condição humana, mostrando que não havia mais razões para diferenciar os Replicantes dos seres humanos, pois eles se tornaram semelhantes em tudo. 

E foi exatamente isso que fez com que Deckard percebesse o quanto era absurdo continuar caçando e eliminando aos Replicantes. Ele recebeu de Roy, digamos assim, uma pequena e bela aula do que é ser humano de verdade.

Rutger Hauer e Daryl Hannah interpretam Roy Batty e Pris, dois Replicantes que possuem todos os sentimentos e emoções tipicamente humanos. Assim, como é possível diferenciá-los dos seres humanos? 


E este foi o conceito do segundo filme, 'Blade Runner 2049', sobre o qual já escrevi um longo texto, em forma de ensaio, no qual procurei demonstrar que o protagonista é um Replicante ('K', interpretado por Ryan Gosling) que busca se tornar humano e que faz essa transição baseada nas diferentes etapas previstas pelo Gnosticismo (ver link abaixo). 

Logo, de certa maneira, o que Dennis Villeneuve fez, na continuação ('Blade Runner 2049'; 2017), foi usar da mudança introduzida por Rutger Hauer, na sequência final do primeiro filme, para estruturar toda a história do segundo filme em torno dessa alteração, aprofundando e tornando muito mais rica e complexa essa transição da condição de Replicante para a de Humano.

Links:

O que está 'além de Orion'? 

https://spainsnews.com/what-is-beyond-orion

Os mistérios da Constelação de Orion e a Mitologia Grega:

https://www.hipercultura.com/os-misterios-da-constelacao-de-orion/

Betelgeuse - Uma supergigante vermelha:

https://www.youtube.com/watch?v=HYWkmidsZhg

Fala final de Rutger Hauer em Blade Runner:

https://www.youtube.com/watch?v=HU7Ga7qTLDU

Rutger Hauer explica porque alterou a fala de Roy Batty na sequência final:

https://c7nema.net/fun-geek-gossip/item/51397-rutger-hauer-reescreveu-o-monologo-de-blade-runner-e-adicionou-tears-in-rain.html

Rutger Hauer explica o motivo de ter alterado o monólogo final:

https://www.bol.uol.com.br/entretenimento/2019/07/24/discurso-final-de-ruger-hauer-em-blade-runner-e-um-dos-mais-iconicos-do-cinema.htm

'Blade Runner 2049' e o Gnosticismo:

https://cultsecinefilos.blogspot.com/2020/04/blade-runner-2049-filme-gnostico-possui.html

Comentários

  1. A melhor explicação sobre um filme que eu já li.Esclarecedor total, parabéns.

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  2. Tudo que eu tinha dúvida, agora está explicado.

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    1. Que ótimo. Fico feliz que eu tenha ajudado na compreensão do filme.

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  3. Um dos melhores filmes já feitos precisava de uma dissertação à altura!

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  4. Muito....muito bom....! Esclarece alguns pontos que não tinha entendido...O filme tem um cunho filosófico sofisticado...! E você decifrou...!!!

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