O filme de Michel Hazanavicius e seu interminável festival de mentiras e falsidades sobre Godard!
O filme de Michel Hazanavicius e seu interminável festival de mentiras e falsidades sobre Godard! - Marcos Doniseti!
Godard filmando durante as manifestações do Maio de 68 francês, das quais ele participou intensamente. |
O filme 'Le Redoutable' ('O Formidável'; 2017), dirigido por Michel 'Pinóquio' Hazanavicius sobre Godard não é inteiramente ruim, pois o mesmo conta com um ótimo elenco, ótimos profissionais de fotografia, trilha sonora.
Mas o filme de Hazanavicius também é desonesto e mentiroso.
Entendo que quando um cineasta diz que seu filme é baseado em um livro que narra a trajetória de pessoas reais e que, também, é baseado em acontecimentos reais (como é o caso deste filme), então ele tem que permanecer fiel ao seu conteúdo, à cronologia dos acontecimentos e ao espírito do livro.
Nestes casos, o diretor não tem o direito de mudar nada.
Quando se trata de filmes que são baseados em obras de ficção, não há maiores problemas em se promover mudanças, pois tudo é inventado: personagens, tramas, etc.
Mas isso não vale para filmes baseados em personagens e acontecimentos reais. Neste caso, não existe o direito de mentir e deturpar os acontecimentos, nem as características das personalidades retratadas, apenas porque o cineasta não gosta das pessoas sobre as quais ele faz seus filmes.
Mas foi exatamente isso que Hazanavicius fez no filme sobre Godard, pois o mesmo é mentiroso, deturpando inteiramente a história que pretende contar.
Hazanavicius também passa o filme inteiro atribuindo a Godard afirmações que ele NÃO fez e comportamentos que ele NÃO adotou. Ele deturpou totalmente os fatos e o sentido do livro de Anne Wiazemsky ('Um Ano Depois', lançado em 2015 na França e em 2018 no Brasil, pela editora Todavia).
Jean-Luc Godard e Anne Wiazemsky durante as manifestações do Maio de 68 francês. |
Hazanavicius, em seu filme, promove alterações SEMPRE em prejuízo de Godard, do início ao fim, procurando passar a pior imagem possível do cineasta, mesmo que para isso ele tenha que inventar e deturpar as posturas e afirmações de Godard.
Assim, Hazanavicius mentiu e foi inteiramente desonesto em seu filme, que é baseado em 3 elementos fundamentais:
1) Omissões; 2) Distorções; 3) Mentiras.
É isso que irei demonstrar, resumidamente, nesse texto.
E para fazer isso irei comentar 4 sequências do filme, que são:
1) Briga no carro no retorno à Paris? Sem chance;
2) Godard e seu comportamento nas manifestações do Maio de 68;
3) Godard e sua atuação no Grupo Dziga Vertov;
4) Godard e sua discussão com Bertolucci.
1- Briga no carro no retorno à Paris? Sem chance.
Em uma longa sequência do filme, vemos Godard discutindo fortemente no carro, principalmente, com Michele Rosier e Michel Cournot, quando eles retornam do Festival de Cannes à Paris.
Porém, essa é uma sequência inteiramente FALSA E MENTIROSA, pois não tivemos nenhuma briga durante a viagem. Anne Wiazemsky deixa isso bem claro em seu livro e ela ainda diz que Michele Rosier sequer voltou a Paris com eles.
Então, como a Michelle poderia ter brigado tanto com Godard, como o Hazanavicius mostra no filme, se ela sequer estava no carro viajando com eles? Será que a Michele brigou com Godard por meio de telepatia? Ou seria por meio de projeção astral? Isso é patético.
Assim, Hazanavicius inventou uma sequência inteiramente falsa apenas em função de seu ódio e obsessão doentia por Godard.
Obs1: Sobre o relato da viagem de volta à Paris, favor ler as páginas 76 e 77 do livro de Anne Wiazemsky, 'Um Ano Depois'.
2- Godard e seu comportamento nas manifestações do Maio de 68!
Outro fato que é mostrado no filme de maneira totalmente deturpada em relação ao que está contido no livro de Anne Wiazemsky é a maneira como Godard se relacionava com os jovens estudantes revolucionários daquela época e, também, com os manifestantes.
Embora o filme mostre Godard participando ativamente das manifestações e assembleias, o que realmente aconteceu, a forma como isso se deu foi totalmente distorcida no filme.
Desta maneira, no filme do 'Pinóquio' Hazanavicius, vemos Godard adotando uma postura arrogante e grosseira com as pessoas que o reconheciam nas manifestações de Maio de 68. Mas, no livro de Anne não existe um único fato que comprove esse comportamento de Godard.
Em uma passagem do livro, de fato, Anne diz exatamente o contrário do que é mostrado no filme do 'Pinóquio' Hazanavicius.
Ela escreveu o seguinte:
"Às vezes, encontrávamos amigos que trabalhavam no cinema e parávamos um pouco para trocar impressões, conversar. Jean-Luc tinha se tornado mais gentil, mais disponível: aquela multidão tão heterogênea o divertia. Apresentei-lhe duas colegas do Sainte-Marie que eu não via desde o último ano escolar... Jean-Luc interrogou-as sobre os projetos que tinham para o futuro e sobre seus pais".
Obs2: Esse trecho está na página 54 do livro de Anne (Um Ano Depois).
Além disso, o que Anne diz é que, nas manifestações, Godard era reconhecido tanto por pessoas que o admiravam ('Então Godard é um dos nossos?', perguntavam, entusiasmadas), como por pessoas que diziam que ele era um impostor.
E como Godard reagia nestas situações em que era reconhecido e hostilizado? Ela responde dizendo que "Ele não notava nada e continuava filmando'.
Obs3: Esse trecho está na página 62 do livro de Anne Wiazemsky.
Logo, em nenhum momento Anne diz, em seu livro, que Godard teria sido grosseiro com alguém durante as manifestações, mesmo quando era hostilizado por algumas pessoas.
Portanto, essa história a respeito da grosseria de Godard com os manifestantes foi mais uma MENTIRA inventada pelo 'Pinóquio' Hazavinicius em seu filme, que está repleto de falsidades e mentiras sobre Godard, do início ao fim.
3- Godard e sua participação no Grupo Dziga Vertov!
No filme de Hazanavicius, vemos que Godard adota uma postura de omissão quando ocorrem os conflitos envolvendo os membros do Grupo Dziga Vertov, que discordam totalmente a respeito do rumo que deveriam tomar as filmagens de 'Vento do Leste', que foram realizadas na Itália entre 16 de Junho e 16 de Julho de 1969.
No entanto, essa reação de Godard, que é mostrada no filme, também é uma sequência FALSA E MENTIROSA. Essa é mais uma invenção de Hazanavicius feita com o objetivo de passar uma imagem negativa de Godard.
Os conflitos entre os membros do Grupo Dziga Vertov (que era formado por maoistas, leninistas, anarquistas libertários...) realmente aconteceram, mas a reação de Godard aos mesmos foi exatamente o CONTRÁRIO do que vemos no filme de Michel 'Pinóquio' Hazanavicius.
Em sua biografia de Godard ('Godard: A Portrait of the Artist at Seventy'), Colin MacCabe diz que a ação de Godard foi a de entrar em contato com Jean-Pierre Gorin, que estava internado em um hospital de Paris e que não podia sair dali, pois os médicos não permitiam.
Mesmo assim, Godard telefonou para Gorin e lhe disse que se ele não fosse até a Itália, então o filme não seria realizado, pois Godard não queria fazer o filme sozinho.
Segundo Colin MacCabe, Godard disse o seguinte para Gorin: "Ou você vem fazer o filme comigo, ou eu encerro os trabalhos. Tem uma passagem já paga esperando por você na Alitalia". Daí, Gorin foi até Roma, hospedou-se no mesmo hotel em que Godard estava e, assim, eles assumiram o controle da situação e fizeram o filme juntos.
Matéria sobre Godard e Gorin no 'The New York Times'. Jean-Luc Godard quer viver para a Revolução, não morrer por ela. Gorin diz 'Não temos respostas' e Godard conclui, dizendo 'Apenas perguntas'. |
Logo, a postura de Godard foi no sentido de agir para viabilizar a realização de 'Vento do Leste'. Não ocorreu nenhuma omissão ou conformismo da parte dele, que é o que o 'Pinóquio' Hazanavicius mostra em seu filme.
Portanto, essa sequência do filme de Hazanavicius também é FALSA E MENTIROSA.
Uma informação: 'Vento do Leste' contou com uma pequena, mas relevante, participação de Glauber Rocha, que era um grande amigo de Godard. Gorin contou que, na época, Glauber passava madrugadas inteiras dando verdadeiras aulas sobre Tropicalismo para ele e para Godard.
Obs4: Um trecho do capítulo do livro de Colin MacCabe foi reproduzido no livro 'Grupo Dziga Vertov', organizado por Jane de Almeida, de 2005, publicado pela Witz Edições (páginas 14 a 34). Então, como o livro de MacCabe não foi traduzido para o português, indico esta edição nacional para ler a respeito dessa fase, maoista, de Godard. As informações sobre a atuação de Godard durante as filmagens de 'Vento do Leste' estão na página 22 deste livro, que é um dos melhores e mais completos sobre o Grupo Dziga Vertov.
O livro foi lançado em função da realização de uma Mostra de filmes do Grupo Dziga Vertov, no Centro Cultural Banco do Brasil, em 2005. A mostra, organizada por Jane de Almeida, contou com a participação de Jean-Pierre Gorin. E temos uma palestra dele feita naquela época, com 2 horas de duração, que está disponível no Youtube (ver link depois do texto). Vale a pena conferir.
4) Godard e sua discussão com Bertolucci!
Bertolucci, Godard e Pasolini em 1969. |
Sobre a discussão com Bernardo Bertolucci, que era um jovem cineasta muito influenciado por Godard, o filme do 'Pinóquio' Hazanavicius conta uma história pela metade, o que é feito para deturpar a imagem de Godard, tal como acontece durante todo o filme.
No livro vemos que Godard foi convidado por Bertolucci para participar de um debate, em Roma, com estudantes, profissionais do cinema e estudiosos italianos a respeito da relação entre 'Cinema e engajamento político', incluindo o próprio Bernardo, Gianni Amico, entre outros.
Neste debate, Godard ataca o que chama de 'concepção revisionista do Cinema' e chegou a dizer o seguinte: "Vomito nessa concepção romântica do cinema e da obra de arte em geral", o que deixou os participantes do debate totalmente chocados e indignados, incluindo o próprio Bertolucci.
E sobre os filmes que havia feito até aquele momento, Godard diz (para espanto de todos os presentes) que "Renego-os, assim como renego todos os meus outros filmes". Bertolucci reage, chocado, dizendo que "Você não pode dizer isso, esses filmes iluminam nossos caminhos".
Obs5: Informações retiradas das páginas 130 e 131 do livro de Anne Wiazemsky.
Luc Moullet, Godard e Gorin, em 2004. Este foi o último encontro de Godard e Gorin. Foto de Jean Gaumy. |
Depois que o debate termina, Godard, Anne, Bertolucci, Paola (mulher de Bernardo, embora não fossem casados), Gianni Amico e uma jovem foram para um restaurante, onde o debate continuou e ficou bastante intenso, levando o cineasta francês a abandonar o local por 15 minutos, ficando do lado de fora, sob uma forte chuva, e retornando logo depois.
Apesar da discussão, Anne conta que Godard reclamou com Bertolucci (a quem ele chama de irmão) de que o mesmo não foi atrás dele quando saiu do restaurante.
Anne encerra o seu relato dizendo que a noite terminou com todos dando gargalhadas daquele momento, conversando, rindo o tempo inteiro.
Ela escreveu o seguinte: "Nossas risadas chegaram às mesas mais próximas e logo às de todo o restaurante. Jean-Luc continuava sendo aquele homem totalmente imprevisível".
Obs6: Informações retiradas das páginas 131 a 134 do livro de Anne Wiazemsky.
No entanto, no filme de Hazanavicius essa reconciliação final entre Godard e os demais (principalmente com Bertolucci, seu amigo e admirador) não aconteceu e a discussão entre eles ocorre em um local público (e não em um restaurante), em que Godard e Bertolucci trocam ofensas ('vai se f...') e para por aí.
Mensagens de admiradores nos vidros da janela da residência de Godard, em Rolle, na Suíça, após o seu falecimento, em 13/09/2022. |
Assim, o filme de Hazanavicius conta apenas uma parte do que aconteceu e omite totalmente a maneira como esse encontro e debate, entre Godard e Bertolucci, terminou, com eles se reconciliando no final e com todos conversando e dando muitas risadas.
Por que Hazanavicius omitiu essa parte da história?
Oras, ele fez isso para mostrar a pior imagem possível de Godard. E ele fez isso mesmo depois que afirmou que desejava levar a história do livro de Anne para as telas do Cinema. Porém, isso foi algo que ele não fez, porque o livro conta uma história real, enquanto o filme não passa de um festival interminável de falsidades e mentiras.
Durante o filme inteiro, Hazanavicius contava apenas a parte que combinava perfeitamente com o seu objetivo, que é o de atacar Godard e tentar destruir, de maneira desonesta e mentirosa, a imagem do revolucionário cineasta da Nouvelle Vague.
'O esquecimento do extermínio faz parte do extermínio'. Frase de Godard que, infelizmente, permanece mais atual do que nunca. |
Resumo!
O filme inteiro de Hazanavicius está repleto de falsidades, mentiras e distorções, divulgando uma imagem totalmente FALSA E MENTIROSA de Godard.
Lamento, sinceramente, por todas as pessoas que assistiram ao filme pensando que estavam vendo uma obra realista, verdadeira e honesta.
Mas isso é tudo o que o filme de Hazanavicius não é.
O que se pode concluir é que o público foi enganado e tratado como idiota pelo aspirante a cineasta e mentiroso chamado Hazanavicius.
Links:
Palestra de Jean-Pierre Gorin no CCBB em 2005:
https://www.youtube.com/watch?v=vx3YGpSjcdQ
O cinema militante de Godard:
https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2024/02/entre-o-envolvimento-objetivo-e-o.html
'Je Vous Salue, Sarajevo' (JL Godard; 1993; 02 minutos):
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